por Renato Janine Ribeiro
Não há filósofo mais mal-entendido do que Maquiavel. E isso não
porque tenha escrito coisa difícil de compreender; seu livro mais
conhecido, O príncipe, é incomparavelmente mais fácil de se ler do que
qualquer obra de Kant ou Hegel. Mas, se entendemos tudo o que ele diz,
não é simples compreender o que ele quis dizer. Durante quatrocentos
anos, os especialistas o leram ao pé da letra, acreditando que defendia o
poder a todo custo, inclusive o da supressão da moralidade; nenhum
scholar hoje partilha essa opinião, ainda que continue dominante entre
quem nunca leu Maquiavel. Mas uma coisa sempre foi certa: não é dele a
frase segundo a qual os fins justificam os meios.
A grande questão d’O príncipe é: existem repúblicas e
monarquias, e entre as monarquias há as antigas e as novas. O livro
discute somente as novas. Porque, quando o poder é antigo, ou quando foi
conferido pelo povo, as pessoas não veem muito problema em obedecer.
Mas, se o poder foi conquistado há pouco, falta-lhe o que chamaríamos de
legitimidade: a disposição mental dos súditos de respeitar o
governante. E isso se agrava quando o governo novo foi instaurado não
com armas próprias, mas alheias.
Por que esse caso raro – não na Itália de 1500, mas no resto do
mundo sim – se torna assim decisivo? Porque nele se capta a essência da
Política – sua capacidade de criar, quase do nada, a legitimidade, a
capacidade que tenha o governante de construir, quase do nada, a
obediência. Não é pela força, porque o príncipe em questão não dispõe de
armas suas. É pelas ações, pela palavra, por uma persuasão escorada em
alguma violência do governante, que acima de tudo precisa ser bem usada.
Ao contrário do que se imagina, a mera força de nada serve. O que é
necessário é o que vai além da força bruta ou física e se chama poder.
Se Maquiavel começa o livro especificando seu campo de
interesse – o regime não republicano, mas monárquico; que não é antigo,
mas novo; que não foi obtido por armas próprias, mas alheias – ele
praticamente o conclui com uma distinção que mais ou menos se sobrepõe a
esta. No penúltimo capítulo d’O príncipe, afirma que dos resultados de
nossas ações pode-se dizer que metade vem da fortuna (mais ou
menos, o acaso, a sorte, boa ou má), metade da virtù. Para ele, essa
palavra não significa virtude moral, e por isso os estudiosos preferem
citá-la em italiano, a fim de preservar o sabor maquiaveliano. A virtù
seria a excelência do príncipe, do condottiere, ao saber como enfeixar
em suas mãos os fios descosidos do destino. Tem virtù quem sabe, em uma
situação adversa ou apenas devida à sorte, tornar-se senhor. Vejam o
exemplo que dá Maquiavel: tempestades arrasam pontes e estradas, eis a fortuna; mas, depois, o homem refaz o que foi destruído, tornando- -o mais resistente ao azar, eis a virtù.
O que faz então o príncipe, não digo o ameaçado pela má sorte,
mas o que deve seu status apenas à boa sorte, sem mérito próprio, sem
forças armadas suas que o defendam? Ele deve ser habilíssimo. Cada gesto
seu precisa estar dirigido à construção de um poder que impressione. O
grande exemplo de Maquiavel está em Cesare Borgia, quando esse príncipe
novo por excelência – que deve sua posição apenas à sorte de ser filho
de papa – ganha a Romagna, então assolada por bandidos. Nomeia um
preposto, Ramiro dell’Orco, para que acabe com eles, o que Ramiro faz
com energia e crueldade. A região está pacificada, mas Cesare ficou com
fama ruim. Para sanar o entrave, Cesare manda matar, de forma cruel, seu
próprio delegado, Ramiro. O corpo dele, ensanguentado, no centro da
capital da Romagna, basta para mostrar que o príncipe pode ser terrível e
bom. Um gesto teatral fortalece Cesare Borgia.
Antes sortudo, agora ele tem poder próprio.
Atividade: elabore o resumo do texto acima em 15 linhas. Use suas palavras.
Leia Mais:http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,virtu-e-fortuna,1527392
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