terça-feira, 31 de agosto de 2010

A formação da sociedade segundo Marx

Para compreender o fenômeno da alienação, Marx estudou o modo como as sociedades são produzidas historicamente pelos seres humanos. Verificou que, historicamente, uma sociedade (pequena, grande, tribal, imperial, não importa) sempre começa por uma divisão e que essa divisão organiza todas as relações sociais que serão instituídas a seguir. Trata-se da divisão social do trabalho. Na luta pela sobrevivência, os seres humanos se agrupam para explorar os recursos da Natureza e dividem as tarefas: tarefas dos homens adultos, tarefas das mulheres adultas, tarefas dos homens jovens, tarefas das mulheres jovens, tarefas das crianças e dos idosos. A partir dessa divisão, organizam a primeira instituição social: a família, na qual o homem adulto, na qualidade de pai, torna-se chefe e domina a mulher adulta, sua esposa e mãe de seus filhos, os quais também são dominados pelo pai.


As famílias trabalham e trocam entre si os produtos do trabalho. Surge uma segunda instituição social: a troca, isto é, o comércio. Algumas famílias conquistam terras melhores do que outras e conseguem colheitas ou gado em maior quantidade que outras, trocando seus produtos por uma quantidade maior que a de outras. Ficam mais ricas. As muito pobres, não tendo conseguido produzir nada ou muito pouco, vêem-se obrigadas a trabalhar para as mais ricas em troca de produtos para a sobrevivência. Começa a surgir uma terceira instituição social: o trabalho servil, que desembocará na escravidão.

Os mais ricos e poderosos reúnem-se e decidem controlar o conjunto de famílias, distribuindo entre si os poderes e excluindo algumas famílias de todo poder. Começa a surgir uma quarta instituição social: o poder político, de onde virá o Estado.

Nessa altura, os seres humanos já começaram a explicar a origem e a finalidade do mundo, já elaboraram mitos e ritos. As famílias ricas e poderosas dão a alguns de seus membros autoridade exclusiva para narrar mitos e celebrar ritos. Criam uma outra instituição social: a religião, dominada por sacerdotes saídos das famílias poderosas e que, por terem a autoridade para se relacionar com o sagrado, tornam-se temidos e venerados pelo restante da sociedade. São um novo poder social.


Os vários grupos de famílias dirigentes disputam entre si terras, animais e servos e dão início a uma nova instituição social: a guerra, com a qual os vencidos se tornam escravos dos vencedores, e o poder econômico, social, militar, religioso e político se concentra ainda mais em poucas mãos.


Com essa descrição, Marx observou que a sociedade nasce pela estruturação de um conjunto de divisões: divisão sexual do trabalho, divisão social do trabalho, divisão social das trocas, divisão social das riquezas, divisão social do poder econômico, divisão social do poder militar, divisão social do poder religioso e divisão social do poder político. Por que divisão? Porque em todas as instituições sociais (família, trabalho, comércio, guerra, religião, política) uma parte detém poder, riqueza, bens, armas, idéias e saberes, terras, trabalhadores, poder político, enquanto outra parte não possui nada disso, estando subjugada à outra, rica, poderosa e instruída.


Na existência social, os seres humanos julgam que sabem o que é a sociedade, dizendo que Deus ou a Natureza ou a Razão a criaram, instituíram a política e a História, e que os homens são seus instrumentos; ou, então, acreditam que fazem o que fazem e pensam o que pensam porque são indivíduos livres, autônomos e com poder para mudar o curso das coisas como e quando quiserem. Por exemplo, quando alguém diz que uma pessoa é pobre porque quer, porque é preguiçosa, ou perdulária, ou ignorante, está imaginando que somos o que somos somente por nossa vontade, como se a organização e a estrutura da sociedade, da economia, da política não tivesse qualquer peso sobre nossas vidas. A mesma coisa acontece quando alguém diz ser pobre “pela vontade de Deus” e não por causa das condições concretas em que vive. Ou quando faz uma afirmação racista, segundo a qual “a Natureza fez alguns superiores e outros inferiores”.


A alienação social é o desconhecimento das condições histórico-sociais concretas em que vivemos, produzidas pela ação humana também sob o peso de outras condições históricas anteriores e determinadas. Há uma dupla alienação: por um lado, os homens não se reconhecem como agentes e autores da vida social com suas instituições, mas, por outro lado e ao mesmo tempo, julgam-se indivíduos plenamente livres, capazes de mudar suas vidas individuais como e quando quiserem, apesar das instituições sociais e das condições históricas. No primeiro caso, não percebem que instituem a sociedade; no segundo caso, ignoram que a sociedade instituída determina seus pensamentos e ações.


Adaptado de Chauí, M. "Convite à Filosofia".

O marxismo- Alienação Social

Marx era filósofo, advogado e historiador, e interessou-se por um estudo feito por um outro filósofo, Feuerbach. Este investigara o modo como se formam as religiões, isto é, o modo como os seres humanos sentem necessidade de oferecer uma explicação para a origem e a finalidade do mundo.


Ao buscar essa explicação, os humanos projetam fora de si um ser superior dotado das qualidades que julgam as melhores: inteligência, vontade livre, bondade, justiça, beleza, mas as fazem existir nesse ser superior como superlativas, isto é, ele é onisciente e onipotente, sabe tudo, faz tudo, pode tudo.

Pouco a pouco, os humanos se esquecem de que foram os criadores desse ser e passam a acreditar no inverso, ou seja, que esse ser foi quem os criou e os governa. Passam a adorá-lo, prestar-lhe culto, temê-lo. Não se reconhecem nesse Outro que criaram. Em latim, “outro” se diz: alienus. Os homens se alienam e Feuerbach designou esse fato com o nome de alienação.

A alienação é o fenômeno pelo qual os homens criam ou produzem alguma coisa, dão independência a essa criatura como se ela existisse por si mesma e em si mesma, deixam-se governar por ela como se ela tivesse poder em si e por si mesma, não se reconhecem na obra que criaram, fazendo-a um ser-outro, separado dos homens, superior a eles e com poder sobre eles.


Marx não se interessou apenas pela alienação religiosa, mas investigou sobretudo a alienação social. Interessou-se em compreender as causas pelas quais os homens ignoram que são os criadores da sociedade, da política, da cultura e agentes da História. Interessou-se em compreender por que os humanos acreditam que a sociedade não foi instituída por eles, mas por vontade e obra dos deuses, da Natureza, da Razão, em vez de perceberem que são eles próprios que, em condições históricas determinadas, criam as instituições sociais – família, relações de produção e de trabalho, relações de troca, linguagem oral, linguagem escrita, escola, religião, artes, ciências, filosofia – e as instituições políticas – leis, direitos, deveres, tribunais, Estado, exército, impostos, prisões. A ação sociopolítica e histórica chama-se práxis e o desconhecimento de suas origens e de suas causas, alienação.


Por que os seres humanos não se reconhecem como sujeitos sociais, políticos, históricos, como agentes e criadores da realidade na qual vivem? Por que, além de não se perceberem como sujeitos e agentes, os humanos se submetem às condições sociais, políticas, culturais, como se elas tivessem vida própria, poder próprio, vontade própria e os governassem, em lugar de serem controladas e governadas por eles? Por que existe a alienação social? Por que os homens se deixam dominar pela sua própria obra ou criação histórica? Por que filósofos, teólogos, cientistas (portanto, o sujeito do conhecimento) elaboram teorias que reforçam a alienação? Por que filósofos dizem que a sociedade é produzida pela Natureza? Por que teólogos dizem que a família e o Estado existem por vontade de Deus? Por que os cientistas afirmam que a sociedade é racional e criada pela Razão Universal?



Adaptado de Chauí, M. "Convite à Filosofia"

segunda-feira, 30 de agosto de 2010





"o ser dos homens é o seu processo de vida real"


Marx e Engels

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Atividade referente à dialética hegeliana

A atividade já foi realizada em sala de aula, mas aqueles que ainda não entregaram podem responder às questões após a leitura dos posts dialética hegeliana 1 e dialética hegeliana2.

1- De que trata o trecho de Hegel?
2- O que significa identidade? E diferença?
3-O que significa devir no texto?
4-A relação dialética pode ser usada em outras situações, inclusive no cotidiano. Elabore um exemplo e justifique sua resposta.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A Ideologia Alemã 2

Texto para leitura em sala

[Outro] aspecto que intervém diretamente no desenvolvimento histórico é o fato de os homens, que em cada dia renovam a sua própria vida, criarem outros homens, reproduzirem-se; é a relação entre o homem e a mulher, os pais e os filhos, a família. Esta família, que é inicialmente a única relação social, transforma-se numa relação subalterna quando o acréscimo das necessidades engendra novas relações sociais e o crescimento da população dá origem a novas necessidades; deve-se por conseguinte abordar e desenvolver este tema da família a partir dos fatos empíricos existentes e não do “conceito de família”, como é hábito fazer-se na Alemanha.

A produção da vida, tanto a própria através do trabalho como a alheia através da procriação, surge-nos agora como uma relação dupla: por um lado como uma relação natural e, por outro, como uma relação social social no sentido de ação conjugada de vários indivíduos, não importa em que condições, de que maneira e com que objetivo. Segue-se que um determinado modo de produção ou estádio de desenvolvimento industrial se encontram permanentemente ligados a um modo de cooperação ou a um estado social determinados, e que esse modo de cooperação é ele mesmo uma “força produtiva”; segue-se igualmente que o conjunto das forças produtivas acessíveis aos homens determina o estado social e que se deve estudar e elaborar a “história dos homens” em estreita correlação com a história da indústria e das trocas. [...] Logo, manifesta-se imediatamente um sistema de laços materiais entre os homens que é condicionado pelas necessidades e o modo de produção e que é tão velho como os próprios homens - sistema de laços que adquire constantemente novas formas e tem assim uma “história” mesmo sem que exista ainda qualquer absurdo político ou religioso que contribua também para unir os homens.

[...] o homem também possui “consciência”. Mas não se trata de uma consciência que seja de antemão consciência “pura”. Desde sempre pesa sobre o “espírito” a maldição de estar “imbuído” de uma matéria que aqui se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, numa palavra, sob a forma da linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência: é a consciência real, prática, que existe também para outros homens e que portanto existe igualmente só para mim e, tal como a consciência, só surge com a necessidade, as exigências dos contatos com os outros homens.

A consciência é pois um produto social e continuará a sê-lo enquanto houver homens. A consciência é, antes de tudo, a consciência do meio sensível imediato e de uma relação limitada com outras pessoas e outras coisas situadas fora do indivíduo que toma consciência; é simultaneamente a consciência da natureza que inicialmente se depara ao homem como uma força francamente estranha, toda-poderosa e inatacável, perante a qual os homens se comportam de uma forma puramente animal e que os atemoriza tanto como aos animais; por conseguinte, uma consciência de natureza puramente animal (religião natural). Por outro lado, a consciência da necessidade de entabular relações com os indivíduos que o cercam marca para o homem a tomada de consciência de que vive efetivamente em sociedade. Este como é tão animal como a própria vida social nesta fase; trata-se de uma simples consciência gregária e, neste aspecto, o homem distingue-se do carneiro pelo simples fato de a consciência substituir nele o instinto ou de o seu instinto ser um instinto consciente. Esta consciência gregária ou tribal desenvolve-se e aperfeiçoa-se posteriormente devido ao aumento da produtividade, das necessidades e da população, que constitui aqui o fator básico. É deste modo que se desenvolve a divisão do trabalho que primitivamente não passava de divisão de funções no ato sexual e, mais tarde, de uma divisão “natural” do trabalho consoante os dotes físicos (o vigor corporal, por exemplo), as necessidades, o acaso, etc. A divisão do trabalho só surge efetivamente a partir do momento em que se opera uma divisão entre o trabalho material e intelectual. A partir deste momento, a consciência pode supor-se algo mais do que a consciência da prática existente, que representa de fato qualquer coisa sem representar algo de real.

E igualmente a partir deste instante ela encontra-se em condições de se emancipar do mundo e de passar à formação da “teoria pura”, teologia, filosofia, moral, etc.


Questões

1- Qual a diferença entre o fato empírico da família e o "conceito de família"?

2- Como surge a linguagem humana segundo Marx e Engels? Você concorda? Justifique sua resposta.

3- O que forma a consciência?

4- Como surge a divisão do trabalho? Em que ela consiste?

5- Discussão: quais as consequências sociais da divisão do trabalho?

domingo, 22 de agosto de 2010

A Ideologia Alemã 1

Texto de Karl Marx e Friedrich Engels para leitura em sala.



Até agora, os homens formaram sempre idéias falsas sobre si mesmos, sobre aquilo que são ou deveriam ser. Organizaram as suas relações mútuas em função das representações de Deus, do homem normal, etc., que aceitavam. Estes produtos do seu cérebro acabaram por os dominar; apesar de criadores, inclinaram-se perante as suas próprias criações. Libertemo-los portanto das quimeras, das idéias, dos dogmas, dos seres imaginários cujo jugo os faz degenerar. Revoltemo-nos contra o império dessas idéias. Ensinamos os homens a substituir essas ilusões por pensamentos que correspondam à essência do homem, afirma um; a ter perante elas uma atitude crítica, afirma outro; a tirá-las da cabeça, diz um terceiro e a realidade existente desaparecerá.

Estes sonhos inocentes e pueris formam o núcleo da filosofia atual dos Jovens Hegelianos; e, na Alemanha, são não só acolhidas pelo público com um misto de respeito e pavor corno ainda apresentadas pelos próprios heróis filosóficos com a solene convicção de que tais idéias, de uma virulência criminosa, constituem para o mundo um perigo revolucionário. O primeiro volume desta obra propõe-se desmascarar estas ovelhas que se julgam lobos e que são tomadas como lobas mostrando que os seus balidos apenas repetem numa linguagem filosófica as representações dos burgueses alemães e que as suas fanfarronadas se limitam a refletir a pobreza lastimosa da realidade alemã; propõe-se ridicularizar e desacreditar esse combate filosófico contra as sombras da realidade que tanto agrada à sonolência sonhadora do povo alemão.

Em tempos, houve quem pensasse que os homens se afogavam apenas por acreditarem na idéia da gravidade. Se tirassem esta idéia da cabeça, declarando por exemplo que não era mais do que uma representação religiosa, supersticiosa, ficariam imediatamente livres de qualquer perigo de afogamento. Durante toda a sua vida, o homem que assim pensou viu-se obrigado a lutar contra todas as estatísticas que demonstram repetidamente as conseqüências perniciosas de uma tal ilusão. Este homem constituía um exemplo vivo dos atuais filósofos revolucionários alemães.
As premissas de que partimos não constituem bases arbitrárias, nem dogmas; são antes bases reais de que só é possível abstrair no âmbito da imaginação. As nossas premissas são os indivíduos reais, a sua ação e as suas condições materiais de existência, quer se trate daquelas que encontrou já elaboradas quando do seu aparecimento quer das que ele próprio criou. Estas bases são portanto verificáveis por vias puramente empíricas.

A primeira condição de toda a história humana é evidentemente a existência de seres humanos vivos. O primeiro estado real que encontramos é então constituído pela complexidade corporal desses indivíduos e as relações a que ela obriga com o resto da natureza. Não poderemos fazer aqui um estudo aprofundado da constituição física do homem ou das condições naturais, geológicas, orográficas, hidrográficas, climáticas e outras, que se lhe depararam já elaboradas. Toda a historiografia deve necessariamente partir dessas bases naturais e da sua modificação provocada pelos homens no decurso da história.


Pode-se referir a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre os homens e os animais; porém, esta distinção só começa a existir quando os homens iniciam a produção dos seus meios de vida, passo em frente que é conseqüência da sua organização corporal. Ao produzirem os seus meios de existência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material. A forma como os homens produzem esses meios depende em primeiro lugar da natureza, isto é, dos meios de existência já elaborados e que lhes é necessário reproduzir; mas não deveremos considerar esse modo de produção deste único ponto de vista, isto é, enquanto mera reprodução da existência física dos indivíduos. Pelo contrário, já constitui um modo determinado de atividade de tais indivíduos, uma forma determinada de manifestar a sua vida, um modo de vida determinado. A forma como os indivíduos manifestam a sua vida reflete muito exatamente aquilo que são, o que são coincide portanto com a sua produção, isto é, tanto com aquilo que produzem como com a forma como produzem. Aquilo que os indivíduos são depende portanto das condições materiais da sua produção.

Esta produção só aparece com o aumento da população e pressupõe a existência de relações entre os indivíduos. A forma dessas relações é por sua vez condicionada pela produção.


Atividades

1- Quais seriam as ideias falsas que os autores citam no texto? Como elas foram formadas?
2- Qual o papel da filosofia dos jovens hegelianos na Alemanha? O que propõem os autores contra esta filosofia?
3- O que significa dizer “as nossas premissas são os indivíduos reais”? Qual o significado de “empíricas”?
4- Explique a consideração sobre a historiografia.
6- Qual a diferença entre homens e animais para os autores?

A dialética hegeliana 2

“A verdade não é nem o Ser nem o Nada, mas o fato de que o Ser passou (e não passa) ao Nada, e o Nada ao Ser. Contudo, do mesmo modo, a verdade não é a indiferenciação deles, mas sua não-identidade e sua diferença absoluta, e apesar disto, mais uma vez, eles são unidos e inseparáveis, e cada um deles desaparece imediatamente no seu oposto. A verdade deles é pois esse movimento de desaparecimento imediato de um no outro: o Devir. Movimento no qual eles estão ambos bem separados, mas por uma diferença que é imediatamente anulada.”


O texto acima, escrito pelo filósofo alemão G. W. F. Hegel, trata de uma definição dialética da verdade. O modo de pensar dialético é diferente daquele que conhecemos tradicionalmente (atribuído em grande medida a Aristóteles, vide post sobre noções de lógica aristotélica). Com Hegel, a verdade é conhecida não por um pólo (o Ser) ou outro (o Nada), mas é algo que está entre os dois: passagem do Ser ao Nada e vice-versa, mas admitindo que ao mesmo tempo não haja passagem.


Na dialética, a contradição é admitida e necessária, enquanto que na lógica aristotélica não é possível haver Ser e Nada ao mesmo tempo, a contradição é impensável e a verdade é um único estado, no exemplo, ela pode ser o Ser ou o Nada, mas não os dois contrários ao mesmo tempo.


Mas a verdade não é a igualdade entre Ser e Nada (‘indiferenciação’), é justamente o fato de que ambos não são idênticos e têm uma diferença absoluta entre eles. A verdade está na diferença e na união e separação simultânea de ambos, no desaparecimento de um no outro. O Ser desaparece no Nada e o Nada desaparece no ser. Diz Hegel que o Devir é a verdade como movimento de desaparecimento de um no outro. O movimento tem separação, embora a diferença seja anulada.


Comparando novamente com a lógica tradicional de Aristóteles, Hegel não faz o mesmo uso de identidade e diferença como coisas fixas, mas intercambiáveis e partes de um mesmo processo de transformação que ocorre o tempo todo. Para Aristóteles, a identidade é aquilo que é igual a si mesmo, ou seja, exclusivo de um único Ser. Por exemplo: eu sou idêntico a mim mesmo e a minha identidade é o eu (repare que é uma tautologia indispensável para poder pensar logicamente) e a diferença, por contraste, é aquilo que não é igual a si mesmo. A filosofia dialética de Hegel admite o idêntico que se torna não-idêntico pelo Devir e retorna à sua identidade ao final do processo, mas como uma nova identidade que incorpora todas as fases do diferente, o negativo ou o não-idêntico.


O modo dialético hegeliano foi utilizado por muitos filósofos, com adaptações, entre eles Karl Marx e Friedrich Engels para pensar os processos históricos, as relações sociais entre patrões e empregados (ou burgueses e proletários) ou mesmo as relações naturais. Também permite pensar a relação eu-outro ou ser humano e natureza.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

quadrinhos 10 pãezinhos



"Ao retirar o véu que cobre o real, procurando penetrar nas coisas, encontramos apenas a nós mesmos".
Hegel

A dialética hegeliana 1

A filosofia de Hegel contraria a visão de muitas outras correntes de que a realidade é baseada num só princípio. É chamada de idealismo e procura superar o dualismo de sujeito e objeto. O principio básico do idealismo está no próprio homem (na subjetividade), ou seja, se encontra a realidade através do homem e é ele quem “define a realidade”. Grosso modo o oposto do idealismo é o materialismo. Podemos considerar Platão como o primeiro idealista onde, para ele, a realidade estava no “mundo das ideias”, nas formas inteligíveis, atingíveis apenas pela razão.


Mas, para Hegel, o fundamento da realidade era a “ideia”, que se desenvolve numa linha de estrita necessidade. A dinâmica dessa necessidade não teria sua lógica determinada pelos princípios de identidade e contradição, mas sim pela “dialética“, realizada em três fases: tese, antítese e síntese. Assim toda realidade primeiro “se apresenta”, depois se nega a si própria e num terceiro momento supera e elimina essa contradição. Dessa maneira, para Hegel, a dialética é o único método de garantir o conhecimento científico do absoluto e de “elevar” a filosofia à ciência, onde a verdade pode receber a forma rigorosa do sistema de cientificidade.


A filosofia dialética é movimento, e precisamente o movimento circular ou em espiral, com ritmo triádico. Os três momentos do movimento dialético são:

1) a tese, que é o momento abstrato ou intelectivo;

2) a antítese, que é o momento dialético (em sentido estrito) ou negativamente racional;

3) a síntese, que é o momento especulativo ou positivamente racional, a negação da negação.


Segundo esse esquema, a ideia lógica, o princípio, converte-se em seu contrário, a natureza, e esta em espírito, que é a “síntese” de ideia e natureza: a ideia “para si”. A cada uma dessas etapas correspondem, respectivamente, a lógica, a filosofia natural e a filosofia do espírito. A parte mais complexa do sistema é essa última: o espírito se desdobra em “subjetivo“, “objetivo” e “absoluto“.


O espírito subjetivo é o de cada indivíduo, e o espírito objetivo é a manifestação da ideia na história: sua expressão máxima é constituída pelo estado, que realiza a razão universal humana, síntese do espírito subjetivo e do objetivo no espírito absoluto. Este alcança o máximo do conhecimento de si mesmo, de maneira cada vez mais perfeita, na arte, na religião e na filosofia. Assim, o espírito só chega a se compreender como tal no homem, já que existe “unidade e identidade da natureza divina e da natureza humana”.


O Processo dialético é um processo racional original, no qual a contradição não mais deve ser evitada a qualquer preço, mas, ao contrário, se transforma no próprio motor do pensamento, ao mesmo tempo em que é o motor da história, já que esta última não é senão o Pensamento que se realiza. Repudiando o princípio da contradição de Aristóteles, em virtude do qual uma coisa não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, Hegel põe a contradição no próprio núcleo do pensamento e das coisas simultaneamente. O pensamento não é mais estático, ele procede por meio de contradições superadas, da tese à antítese e, daí, à síntese, como num diálogo em que a verdade surge a partir da discussão e das contradições. Uma proposição (tese) não pode se pôr sem se opor a outra (antítese) em que a primeira é negada, transformada em outra que não ela mesma (”alienada”). A primeira proposição será finalmente transformada e enriquecida numa nova fórmula que era, entre as duas precedentes, uma ligação, uma “mediação” (síntese).


A dialética para Hegel é o procedimento superior do pensamento é, ao mesmo tempo, “a marcha e o ritmo das próprias coisas”. Vejamos, por exemplo, como o conceitofundamental de “ser” se enriquece dialeticamente. Como é que o ser, essa noção simultaneamente a mais abstrata e a mais real, a mais vazia e a mais compreensiva, transforma-se em outra coisa? É em virtude da contradição que esse conceito se desenvolve. O conceito de ser é o mais geral, mas também o mais pobre. “Ser”, sem qualquer qualidade ou determinação, é, em última análise, não ser absolutamente nada, é “não ser”! O ser, puro e simples, equivale ao não-ser (eis a antítese). É fácil ver que essa contradição se resolve no vir-a-ser (posto que vir-a-ser é não mais ser o que se era). Os dois contrários que engendram o devir (síntese), aí se reencontram fundidos, reconciliados.



ilustração M.C. Escher

domingo, 15 de agosto de 2010

Falta Olho no Olho

O relacionamento interpessoal anda difícil, e há muitas razões para isso.
Temos a obrigatoriedade de encontrar a felicidade, pensamos sempre em nós mesmos em primeiro lugar, consumimos e descartamos tudo com facilidade, competimos com quase todos.
Mas é principalmente o fato de vivermos em uma sociedade que aprecia o espetáculo que tem dificultado sobremaneira o relacionamento entre pais e filhos. Você esteve recentemente em alguma festa junina de escola, onde os alunos apresentaram danças? Participou de uma festa de aniversário de criança ou teve a oportunidade de ver pais e filhos em passeios?
Caso sim, certamente deve ter notado que, em geral, entre os olhos dos pais e os dos filhos há um obstáculo: uma câmera. Ela pode ser fotográfica, embutida no celular, de vídeo etc. Mas está sempre presente.
Às vezes, não é uma câmera que se interpõe entre o encontro de olhares de pais e filhos, e sim um vídeo que não permite que a criança olhe para outra coisa.
Agora, virou moda entreter as crianças com aparelhos portáteis de DVD em todos os lugares.
Muitas famílias já têm esse aparelho até no carro. "Foi a melhor coisa que eu fiz, porque assim as crianças não brigam nem me atrapalham" me disse a mãe de duas crianças.
Outras não viajam sem ele na bolsa, para que esteja sempre pronto para ser sacado em momentos delicados.
Recentemente, em uma viagem aérea, sentei ao lado de um casal com um filho de menos de dois anos. Assim que se acomodaram, a criança começou a berrar e a se contorcer. De imediato, os pais abriram a mochila e de lá retiraram o tal aparelho com um DVD de animação.
Milagre! A criança se acalmou e assim ficou até terminarem o filme e a viagem. Nenhuma troca de palavras ou de olhar entre eles. Nas festas dos filhos, em vez de os pais curtirem a celebração, preferem ficar "registrando" tudo para que depois, em casa, possam assistir ao filme, de preferência com convidados.
Claro que o registro mostra parte da história da família e ajuda a reconstruir a memória pessoal e do grupo, o que é importante na vida.
O problema tem sido a substituição do relacionamento pelo registro porque, dessa maneira, abolimos a memória afetiva.
Vamos reconhecer que, para muitos pais, essa troca é extremamente confortável. É mais fácil acalmar a criança com um filme, é mais tranquilo não ter de enfrentar brigas dos filhos no carro e menos desgastante filmar a festa de aniversário do filho do que participar da mesma.
Só que, dessa maneira, as crianças deixam de aprender coisas importantes e seus pais deixam de exercer seu papel quando ele é mais necessário. Ensinar a criança a conviver é a função mais importantes da família e é isso o que significa socializar.
Saber se conter, se controlar e esperar, desenvolver estratégias frente às decepções e aos sofrimentos, aprender a se cuidar para estar com os outros e a se comportar em diferentes contextos: tudo isso e muito mais é um árduo e longo aprendizado, que deve começar assim que a criança nasce. E a base de todo o ensinamento é o vínculo entre pais e filhos.
É claro que a televisão, o computador, o aparelho de DVD, a câmera, o videogame e tudo o mais têm o seu papel na vida da criança.
Mas a relação entre pais e filhos, o olho no olho, os conflitos entre eles e o convívio entre eles são insubstituíveis.

Roseli Sayão. Folha de São Paulo, 06 de julho de 2010.

Atividades

  1. O texto acima pode ser considerado uma dissertação. Reconheça e assinale as partes da redação: introdução (inclui a tese ou objetivo); desenvolvimento (indique os argumentos separadamente) e conclusão.
  2. Faça uma comparação ou interpretação do texto com a dialética hegeliana. Sugestão: pode-se tomar como base a questão do reconhecimento interpessoal apontada pelo filósofo. Responda sob a forma de dissertação. Faça citações para auxiliar suas argumentações. De 20 a 30 linhas.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

A grande crise da metafísica: David Hume

Se a realidade investigada pela metafísica é aquela que pode e deve ser racionalmente estabelecida pelas ideias verdadeiras produzidas pelo pensamento ou pela razão humana, que acontecerá se se provar que tais ideias são hábitos mentais do sujeito do conhecimento e não correspondem a realidade alguma?


A metafísica clássica ou moderna (por exemplo, a de Descartes) baseava-se na afirmação de que o intelecto humano ou o pensamento possui o poder para conhecer a realidade tal como é em si mesma e que, graças às operações intelectuais ou aos conceitos que representam as coisas e as transformam em objetos de conhecimento, o sujeito do conhecimento tem acesso ao Ser.


A metafísica baseava-se em dois pressupostos: (1) a realidade em si existe e pode ser conhecida; (2) ideias ou conceitos são um conhecimento verdadeiro da realidade, porque a verdade é a correspondência entre as coisas e os pensamentos, ou entre o intelecto e a realidade.

Esses dois pressupostos assentavam-se num único fundamento: a existência de um Ser Infinito (Deus) que garantia a realidade e a inteligibilidade de todas as coisas, dotando os humanos de um intelecto capaz de conhecê-las tais como são em si mesmas.

David Hume dirá que os dois pressupostos da metafísica não têm fundamento, não possuem validade alguma.


A metafísica – antiga, medieval e clássica ou moderna – era sustentada por três princípios: identidade, não-contradição e razão suficiente ou causalidade. Os dois primeiros serviam de garantia para a ideia de substância ou essência; o terceiro servia de garantia para explicar a origem e a finalidade das coisas, bem como as relações entre os seres.


Hume, partindo da teoria do conhecimento, mostrou que o sujeito do conhecimento opera associando sensações, percepções e impressões recebidas pelos órgãos dos sentidos e retidas na memória. As idéias nada mais são do que hábitos mentais de associação de impressões semelhantes ou de impressões sucessivas.


Que é a ideia de substância ou de essência? Nada mais do que um nome geral dado para indicar um conjunto de imagens e de ideias que nossa consciência tem o hábito de associar por causa das semelhanças entre elas. O princípio da identidade e o da não-contradição são simplesmente o resultado de percebermos repetida e regularmente certas coisas semelhantes e sempre da mesma maneira, levando-nos a supor que, porque as percebemos como semelhantes e sempre da mesma maneira, isso lhes daria uma identidade própria, independente de nós.


Que é a ideia de causalidade? O mero hábito que nossa mente adquire de estabelecer relações de causa e efeito entre percepções e impressões sucessivas, chamando as anteriores de causas e as posteriores de efeitos. A repetição constante e regular de imagens ou impressões sucessivas nos leva à crença de que há uma causalidade real, externa, própria das coisas e independente de nós.


Substância, essência, causa, efeito, matéria, forma e todos os outros conceitos da metafísica (Deus, mundo, alma, infinito, finito, etc.) não correspondem a seres, a entidades reais e externas, independentes do sujeito do conhecimento, mas são nomes gerais com que o sujeito nomeia e indica seus próprios hábitos associativos. Eis porque a metafísica foi sempre alimentada por controvérsias infindáveis, pois não se referia a nenhuma realidade externa existente em si e por si, mas a hábitos mentais dos sujeitos, hábitos que são muito variáveis e dão origem a inúmeras doutrinas filosóficas sem qualquer fundamento real. A partir de Hume, a metafísica, tal como existira desde o século IV a.C., tornava-se impossível.


Adaptado de Chauí, M. “Convite à Filosofia”

razões de cachorro e razões de homens

quadrinho: Angeli

O empirismo

Contrariamente aos defensores do inatismo (Descartes entre eles), os defensores do empirismo afirmam que a razão, a verdade e as idéias racionais são adquiridas por nós através da experiência. Antes da experiência, dizem eles, nossa razão é como uma “folha em branco”, onde nada foi escrito; uma “tábula rasa”, onde nada foi gravado. Somos como uma cera sem forma e sem nada impresso nela, até que a experiência venha escrever na folha, gravar na tábula, dar forma à cera.

No decorrer da história da Filosofia muitos filósofos defenderam a tese empirista, mas os mais famosos e conhecidos são os ingleses dos séculos XVI ao XVIII: Francis Bacon, John Locke, George Berkeley e David Hume.

Que dizem os empiristas?
Nossos conhecimentos começam com a experiência dos sentidos, isto é, com as sensações. Os objetos exteriores excitam nossos órgãos dos sentidos e vemos cores, sentimos sabores e odores, ouvimos sons, sentimos a diferença entre o áspero e o liso, o quente e o frio, etc. As sensações se reúnem e formam uma percepção; ou seja, percebemos uma única coisa ou um único objeto que nos chegou por meio de várias e diferentes sensações. Assim, vejo uma cor vermelha e uma forma arredondada, aspiro um perfume adocicado, sinto a maciez e digo: “Percebo uma rosa”. A “rosa” é o resultado da reunião de várias sensações diferentes num único objeto de percepção.
As percepções, por sua vez, se combinam ou se associam. A associação pode dar-se por três motivos: por semelhança, por proximidade ou contigüidade espacial e por sucessão temporal. A causa da associação das percepções é a repetição. Ou seja, de tanto algumas sensações se repetirem por semelhança, ou de tanto se repetirem no mesmo espaço ou próximas umas das outras, ou, enfim, de tanto se repetirem sucessivamente no tempo, criamos o hábito de associá-las. Essas associações são as idéias.

As idéias, trazidas pela experiência, isto é, pela sensação, pela percepção e pelo hábito, são levadas à memória e, de lá, a razão as apanha para formar os pensamentos.
A experiência escreve e grava em nosso espírito as idéias, e a razão irá associa-las, combiná-las ou separá-las, formando todos os nossos pensamentos. Por isso, David Hume dirá que a razão é o hábito de associar idéias, seja por semelhança, seja por diferença.
O exemplo mais importante (por causa das conseqüências futuras) oferecido por Hume para mostrar como formamos hábitos racionais é o da origem do princípio da causalidade (razão suficiente).

A experiência me mostra, todos os dias, que, se eu puser um líquido num recipiente e levar ao fogo, esse líquido ferverá, saindo do recipiente sob a forma de vapor. Se o recipiente estiver totalmente fechado e eu o destampar, receberei um bafo de vapor, como se o recipiente tivesse ficado pequeno para conter o líquido.

A experiência também me mostra, todo o tempo, que se eu puser um objeto sólido (um pedaço de vela, um pedaço de ferro) no calor do fogo, não só ele se derreterá, mas também passará a ocupar um espaço muito maior no interior do recipiente. A experiência também repete constantemente para mim a possibilidade que tenho de retirar um objeto preso dentro de um outro, se eu aquecer este último, pois, aquecido, ele solta o que estava preso no seu interior, parecendo alargar-se e aumentar de tamanho. Experiências desse tipo, à medida que vão se repetindo sempre da mesma maneira, vão criando em mim o hábito de associar o calor com certos fatos.

Adquiro o hábito de perceber o calor e, em seguida, um fato igual ou semelhante a outros que já percebi inúmeras vezes. E isso me leva a dizer: “O calor é a causa desses fatos”. Como os fatos são de aumento do volume ou da dimensão dos corpos submetidos ao calor, acabo concluindo: “O calor é a causa da dilatação dos corpos” e também “A dilatação dos corpos é o efeito do calor”. É assim, diz Hume, que nascem as ciências. São elas, portanto, hábito de associar idéias, em conseqüência das repetições da experiência.

Ora, ao mostrar como se forma o princípio da causalidade, Hume não está dizendo apenas que as idéias da razão se originam da experiência, mas está afirmando também que os próprios princípios da racionalidade são derivados da experiência.

Mais do que isso. A razão pretende, através de seus princípios, seus procedimentos e suas ideias, alcançar a realidade em seus aspectos universais e necessários. Em outras palavras, pretende conhecer a realidade tal como é em si mesma, considerando que o que conhece vale como verdade para todos os tempos e lugares (universalidade) e indica como as coisas são e como não poderiam, de modo algum, ser de outra maneira (necessidade).

Ora, Hume torna impossível tanto a universalidade quanto a necessidade pretendidas pela razão. O universal é apenas um nome ou uma palavra geral que usamos para nos referirmos à repetição de semelhanças percebidas e associadas.

O necessário é apenas o nome ou uma palavra geral que usamos para nos referirmos à repetição das percepções sucessivas no tempo. O universal, o necessário, a causalidade são meros hábitos psíquicos.

Adaptado de Chauí, M. "Convite à Filosofia"

Descartes, os animais, os sentidos e a modernidade


Os erros dos sentidos

[...] muitas experiências arruinaram, pouco a pouco, todo o crédito que eu dera aos sentidos.

Pois observei muitas vezes que torres, que de longe se me afiguravam redondas, de perto pareciam-me quadradas, e que colossos, erigidos sobre os mais altos cimos dessas torres, pareciam-me pequenas estátuas quando as olhava de baixo; e assim, em uma infinidade de outras ocasiões, achei erros nos juízos fundados nos sentidos exteriores, mas mesmo nos interiores: pois haverá coisa mais íntima ou mais interior do que a dor?

E, no entanto, aprendi outrora de algumas pessoas que tinham os braços e as pernas cortados, que lhes parecia ainda, algumas vezes, sentir dores nas partes que lhes haviam sido amputadas; isto me dava motivo de pensar que eu não podia também estar seguro de ter dolorido algum de meus membros, embora sentisse dores nele.

[...] jamais acreditei sentir algo, estando acordado, que não pudesse, também, algumas vezes, acreditar sentir, ao estar dormindo; e como não creio que as coisas que me parece que sinto ao dormir procedem de quaisquer objetos existentes, não via por que devia ter antes essa crença no tocante àquelas que me parece que sinto ao estar acordado.

René descartes
Meditações Metafísicas



Os animais não pensam

[...] pois a palavra é o único signo e a única marca certa da presença de pensamento escondida e envolta no corpo; ora, todo homem, seja o mais tolo e mais estúpido, mesmo aqueles que não têm os órgãos da fala, faz uso de sinais, enquanto os brutos nunca fazem qualquer coisa desse tipo; o que pode ser tomado pela verdadeira distinção entre o homem e o bruto.

[...] o argumento principal que pode nos convencer de que os animais não têm razão é que [...] nunca foi observado que qualquer animal tenha alcançado um tal grau de perfeição de modo a ser capaz de nos indicar por voz , ou por outros sinais, alguma coisa que pudesse ser referida como pensamento apenas, em oposição a movimento meramente natural.






Descartes e Bacon como fundadores da modernidade

Bacon e Descartes situam-se em relação de paternidade [com a modernidade] exatamente porque propuseram os meios racionais de emancipação do homem em relação às forças da natureza e aos dogmas estabelecidos por instâncias de autoridade alheias ao domínio da pura razão.

Tais meios racionais constituem os procedimentos de conhecimento da realidade em todos os seus aspectos. Conhecer emancipa porque o conhecimento traz consigo o domínio da realidade.

Da submissão ao senhorio sobre a natureza é pois a trajetória que caracteriza a passagem do arcaico ao moderno, do primado do mundo exterior à primazia de um sujeito livre que se situa perante o mundo na posição de um juiz que é ao mesmo tempo um senhor.

As duas atribuições vinculam-se ao saber cujo único instrumento é a razão. Afirma-se assim um poder indefinido de exploração intelectual da realidade que tem como consequência necessária o domínio técnico da natureza. (Franklin Leopoldo e Silva)


ilustração Fábio Moon

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Qual a finalidade do conhecimento?

Há uma diferença profunda entre a ciência antiga e a moderna. A primeira era uma ciência teorética, isto é, apenas contemplava os seres naturais, sem jamais imaginar intervir neles ou sobre eles. A técnica era um saber empírico, ligado a práticas necessárias à vida e nada tinha a oferecer à ciência nem a receber dela. Numa sociedade escravista, que deixava tarefas, trabalhos e serviços aos escravos, a técnica era vista como uma forma menor de conhecimento.

Duas afirmações mostram a diferença dos modernos em relação aos antigos: a afirmação do filósofo inglês Francis Bacon, para quem “saber é poder”, e a afirmação de Descartes, para quem “a ciência deve tornar-nos senhores da Natureza”. A ciência moderna nasce vinculada à idéia de intervir na Natureza, de conhecê-la para apropriar-se dela, para controlá-la e dominá-la. A ciência não é apenas contemplação da verdade, mas é sobretudo o exercício do poderio humano sobre a Natureza. Numa sociedade em que o capitalismo está surgindo e, para acumular o capital, deve ampliar a capacidade do trabalho humano para modificar e explorar a Natureza, a nova ciência será inseparável da técnica.

Na verdade, é mais correto falar em tecnologia do que em técnica. De fato, a técnica é um conhecimento empírico, que, graças à observação, elabora um conjunto de receitas e práticas para agir sobre as coisas. A tecnologia, porém, é um saber teórico que se aplica praticamente.

Por exemplo, um relógio de sol é um objeto técnico que serve para marcar horas seguindo o movimento solar no céu. Um cronômetro, porém, é um objeto tecnológico: por um lado, sua construção pressupõe conhecimentos teóricos sobre as leis do movimento (as leis do pêndulo) e, por outro lado, seu uso altera a percepção empírica e comum dos objetos, pois serve para medir aquilo que nossa percepção não consegue perceber. Uma lente de aumento é um objeto técnico, mas o telescópio e o microscópio são objetos tecnológicos, pois sua construção pressupõe o conhecimento das leis científicas definidas pela óptica. Em outras palavras, um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber científico e quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas científicas. A ciência moderna tornou-se inseparável da tecnologia.


Adaptado de Chauí, M. "Convite à Filosofia"

O método cartesiano

Fé e razão

A primeira tarefa que os modernos se deram foi a de separar fé de razão, considerando cada uma delas destinada a conhecimentos diferentes e sem qualquer relação entre si. A segunda tarefa foi a de explicar como a alma ou consciência, embora diferente dos corpos, pode conhecê-los. Consideraram que a alma pode conhecer os corpos porque os representa intelectualmente por meio das idéias e estas são imateriais como a própria alma. A terceira tarefa foi a de explicar como a razão e o pensamento podem tornar-se mais fortes do que a vontade e controlá-la para que evite o erro.

O problema do conhecimento torna-se, portanto, crucial e a Filosofia precisa começar pelo exame da capacidade humana de conhecer, pelo entendimento ou sujeito do conhecimento. A teoria do conhecimento volta-se para a relação entre o pensamento e as coisas, a consciência (interior) e a realidade (exterior), o entendimento e a realidade; em suma, o sujeito e o objeto do conhecimento.

Os dois filósofos que iniciam o exame da capacidade humana para o erro e a
verdade são o inglês Francis Bacon e o francês René Descartes.


O conhecimento realizado através do método

Bacon e Descartes
Os gregos indagavam: como o erro é possível? Os modernos perguntaram: como a verdade é possível? Para os gregos, a verdade era aletheia, para os modernos, veritas. Em outras palavras, para os modernos trata-se de compreender e explicar como os relatos mentais – nossas ideias – correspondem ao que se passa verdadeiramente na realidade. Apesar dessas diferenças, os filósofos retomaram o modo de trabalhar filosoficamente proposto por Sócrates, Platão e Aristóteles, qual seja, começar pelo exame das opiniões contrárias e ilusórias para ultrapassa-las em direção à verdade.

Antes de abordar o conhecimento verdadeiro, Bacon e Descartes examinaram exaustivamente as causas e as formas do erro, inaugurando um estilo filosófico que permanecerá na Filosofia, isto é, a análise dos preconceitos e do senso comum.
Descartes, como já mencionamos, elaborou um método de análise conhecido como dúvida metódica.

Sobre o método, diz ele:
“Por método, entendo regras certas e fáceis, graças às quais todos os que as observem exatamente jamais tomarão como verdadeiro aquilo que é falso e chegarão, sem se cansar com esforços inúteis e aumentando progressivamente sua ciência, ao conhecimento verdadeiro de tudo o que lhes é possível esperar.”

Descartes enuncia, portanto, as três principais características das regras do método:

1. certas (o método dá segurança ao pensamento);
2. fáceis (o método economiza esforços inúteis); e
3. que permitam alcançar todos os conhecimentos possíveis para o entendimento
humano.

Por sua vez, Francis Bacon definiu o método como o modo seguro e certo de “aplicar a razão à experiência”, isto é, de aplicar o pensamento lógico aos dados oferecidos pelo conhecimento sensível.

O método, nas várias formulações que recebeu no correr da história da Filosofia e das ciências, sempre teve o papel de um regulador do pensamento, isto é, de aferidor e avaliador das idéias e teorias: guia o trabalho intelectual (produção das ideias, dos experimentos, das teorias) e avalia os resultados obtidos.

Desde Aristóteles, a Filosofia considera que, ao lado de um método geral que todo e qualquer conhecimento deve seguir, tanto para a aquisição quanto para a demonstração e verificação de verdades, outros métodos particulares são necessários, pois os objetos a serem conhecidos também exigem métodos que estejam em conformidade com eles e, assim, haverá diferentes métodos conforme a especificidade do objeto a ser conhecido. Dessa maneira, são diferentes entre si os métodos da geometria e da física, da biologia e da sociologia, da história e da química, e assim por diante.

É interessante notar, todavia, que, em certos períodos da história da Filosofia e das ciências, chegou-se a pensar num método único que ofereceria os mesmos princípios e as mesmas regras para todos os campos do conhecimento. Assim, por exemplo, Galileu julgou que o método matemático deveria ser usado em todos os conhecimentos da Natureza, pois, dizia ele, “A Natureza é um livro escrito em caracteres matemáticos”.

Descartes, indo mais longe que Galileu, julgou que um só e mesmo método deveria ser empregado pela Filosofia e por todas as ciências, uma mathesis universalis, ou o conhecimento da ordem necessárias das idéias, válida para todos os objetos de conhecimento. Conhecer seria ordenar e encadear em nexos contínuos as idéias referentes a um objeto e tal procedimento deveria ser o mesmo em todos os conhecimentos porque esse é o modo próprio do pensamento, seja qual for o objeto a ser conhecido.

A filosofia de René Descartes

A metafísica como fundamento do conhecimento e da existência


Segundo Descartes, tudo aquilo que lhe fora ensinado pelos preceptores e professores, pelos livros, pelas viagens e pelo convívio com outras pessoas não permitiu que chegasse à verdade e ao conhecimento. Ao final, conclui que tudo quanto aprendera, tudo quanto sabia e tudo quanto conhecera pela experiência era duvidoso e incerto. Decide, então, não aceitar nenhum desses conhecimentos, a menos que pudesse provar racionalmente que eram certos e dignos de confiança. Para isso, submete todos os conhecimentos existentes em sua época e os seus próprios a um exame crítico conhecido como dúvida metódica, declarando que só aceitará um conhecimento, uma idéia, um fato ou uma opinião se, passados pelo crivo da dúvida, revelarem-se indubitáveis para o pensamento puro. Ele os submete à análise, à dedução, à indução, ao raciocínio e conclui que, até o momento, há uma única verdade indubitável que poderá ser aceita e que deverá ser o ponto de partida para a reconstrução do edifício do saber. Essa única verdade é: “Penso, logo existo”, pois, se eu duvidar de que estou pensando, ainda estou pensando, visto que duvidar é uma maneira de pensar. A consciência do pensamento aparece, assim, como a primeira verdade indubitável que será o alicerce para todos os conhecimentos futuros.

Descartes criou um procedimento, a dúvida metódica, pela qual o sujeito do conhecimento, analisando cada um de seus conhecimentos, conhece e avalia as fontes e as causas de cada um, a forma e o conteúdo de cada um, a falsidade e a verdade de cada um e encontra meios para livrar-se de tudo quanto seja duvidoso perante o pensamento. Ao mesmo tempo, o pensamento oferece ao espírito um conjunto de regras que deverão ser obedecidas para que um conhecimento seja considerado verdadeiro. Para Descartes, o conhecimento sensível (isto é, sensação, percepção, imaginação, memória e linguagem) é a causa do erro e deve ser afastado. O conhecimento verdadeiro é puramente intelectual, parte das idéias inatas e controla (por meio de regras) as investigações filosóficas, científicas e técnicas.

Na história da Filosofia, o exemplo mais célebre de intuição intelectual é conhecido como o cogito cartesiano, isto é, a afirmação de Descartes: “Penso (cogito), logo existo”. De fato, quando penso, sei que estou pensando e não é preciso provar ou demonstrar isso, mesmo porque provar e demonstrar é pensar e para demonstrar e provar é preciso, primeiro, pensar e saber que se pensa. Quando digo: “Penso, logo existo”, estou simplesmente afirmando racionalmente que sei que sou um ser pensante ou que existo pensando, sem necessidade de provas e demonstrações. A intuição capta, num único ato intelectual, a verdade do pensamento pensando em si mesmo.


As ideias

Descartes discute a teoria das idéias inatas em várias de suas obras, mas as exposições mais conhecidas encontram-se em duas delas: no Discurso do método e nas Meditações metafísicas. Nelas, Descartes mostra que nosso espírito possui três tipos de idéias que se diferenciam segundo sua origem e qualidade:

1. Idéias adventícias (isto é, vindas de fora) ou empíricas: são aquelas que se originam de nossas sensações, percepções, lembranças; são as idéias que nos vêm por termos tido a experiência sensorial ou sensível das coisas a que se referem. Por exemplo, a idéia de árvore, de pássaro, de instrumentos musicais, etc. São nossas idéias cotidianas e costumeiras, geralmente enganosas ou falsas, isto é, não correspondem à realidade das próprias coisas. Assim, andando à noite por uma floresta, vejo fantasmas. Quando raia o dia, descubro que eram galhos retorcidos de árvores que se mexiam sob o vento. Olho para o céu e vejo, pequeno, o Sol. Acredito, então, que é menor do que a Terra, até que os astrônomos provem racionalmente que ele é muito maior do que ela.

2. Idéias fictícias ou imaginação: são aquelas que criamos em nossa fantasia e imaginação, compondo seres inexistentes com pedaços ou partes de idéias adventícias que estão em nossa memória. Por exemplo, cavalo alado, fadas, elfos, duendes, dragões, Super-Homem, unicórnio etc. São as fabulações das artes, da literatura, dos contos infantis, dos mitos, das superstições. Essas idéias nunca são verdadeiras, pois não correspondem a nada que exista realmente e sabemos que foram inventadas por nós, mesmo quando as recebemos já prontas de outros que as inventaram.

3. Idéias inatas: são aquelas que não poderiam vir de nossa experiência sensorial porque não há objetos sensoriais ou sensíveis para elas, nem poderiam vir de nossa fantasia, pois não tivemos experiência sensorial para compô-las a partir de nossa memória.

As idéias inatas são inteiramente racionais e só podem existir porque já nascemos com elas. Por exemplo, a idéia do infinito (pois não temos qualquer experiência do infinito), as idéias matemáticas (a matemática pode trabalhar com a idéia de uma figura de mil lados, o quiliógono, e, no entanto, jamais tivemos e jamais teremos a percepção de uma figura de mil lados).

Essas idéias, diz Descartes, são “a assinatura do Criador” no espírito das criaturas racionais, e a razão é a luz natural inata que nos permite conhecer a verdade. Como as idéias inatas são colocadas em nosso espírito por Deus, serão sempre verdadeiras, isto é, sempre corresponderão integralmente às coisas a que se referem, e, graças a elas, podemos julgar quando uma idéia adventícia é verdadeira ou falsa e saber que as idéias fictícias são sempre falsas (não correspondem a nada fora de nós). Ainda segundo Descartes, as idéias inatas são as mais simples que possuímos (simples não quer dizer “fáceis”, e sim não-compostas de outras idéias). A mais famosa das idéias inatas cartesianas é o “Penso, logo existo”. Por serem simples, as idéias inatas são conhecidas por intuição e são elas o ponto de partida da dedução racional e da indução, que conhecem as idéias complexas ou compostas.


A tese central dos inatistas é a seguinte: se não possuirmos em nosso espírito a razão e a verdade, nunca teremos como saber se um conhecimento é verdadeiro ou falso, isto é, nunca saberemos se uma idéia corresponde ou não à realidade a que ela se refere. Não teremos um critério seguro para avaliar nossos conhecimentos.

A prova da existência de Deus

Fundamental dentro do sistema filosófico cartesiano é a existência de Deus. Apenas Ele garante a existência do mundo exterior ao eu que pensa. Então é necessário provar a existência de Deus. Descartes o faz por várias formas, entre elas, como dito acima, pelas ideias inatas e pelo conceito de perfeição. Apenas o que é perfeito possui todas as qualidades, incluindo a de existir, então Deus, o ser perfeito existe.

A dualidade da substância

O filósofo também postula a existência de duas substancias diferentes no homem: a Res pensans (coisa, substancia ou essência pensante imaterial) e a Res extensa (coisa, substancia ou essência extensa, a matéria). Assim, a separação permite a Descartes desenvolver toda a sua teoria considerando que o corpo pode ser comparável a uma máquina e as leis que o determinam são as mesmas aplicáveis a qualquer corpo físico, animado ou inanimado, artificial ou natural.

Sua posição é chamada de maquinismo ou mecanicismo e é aplicada em todo e qualquer experimento científico e técnico, desde a medicina até a mecânica.

Descartes considera que a realidade natural é regida por leis universais e necessárias do movimento, isto é, que a natureza é uma realidade mecânica. Considera também que as leis mecânicas ou leis do movimento elaboradas por sua filosofia ou por sua física são idéias racionais deduzidas de idéias inatas simples e verdadeiras.

Os problemas do inatismo

Quando comparamos a física de Descartes com a de Galileu, elaborada na mesma época, verificamos que a física galileana é oposta à cartesiana e é a que será provada e demonstrada verdadeira, a de Descartes sendo falsa. Como poderia isso acontecer, se as idéias da física cartesiana eram idéias inatas? Podemos então perceber quais são os dois grandes problemas do inatismo:

1. a própria razão pode mudar o conteúdo de idéias que eram consideradas universais e verdadeiras;

2. a própria razão pode provar que idéias racionais também podem ser falsas (é o caso da física cartesiana).

Se as idéias são racionais e verdadeiras, é porque correspondem à realidade. Ora, a realidade permanece a mesma e, no entanto, as idéias que a explicavam perderam a validade. Ou seja, o inatismo se depara com o problema da mudança das idéias, feita pela própria razão, e com o problema da falsidade das idéias, demonstrada pela própria razão.



Adaptado de Chauí, M. "Convite à Filosofia"

O problema do conhecimento

De onde vieram os princípios racionais (identidade, não-contradição, terceiro excluído e razão suficiente-vide o post elementos de lógica aristotélica)? De onde veio a capacidade para a intuição (razão intuitiva) e para o raciocínio (razão discursiva)? Nascemos com eles? Ou nos seriam dados pela educação e pelo costume? Seriam algo próprio dos seres humanos, constituindo a natureza deles, ou seriam adquiridos através daexperiência?

Durante séculos, a Filosofia ofereceu duas respostas a essas perguntas. A primeira ficou conhecida como inatismo e a segunda, como empirismo. O inatismo afirma que nascemos trazendo em nossa inteligência não só os princípios racionais, mas também algumas ideias verdadeiras, que, por isso, são ideias inatas. O empirismo, ao contrário, afirma que a razão, com seus princípios, seus procedimentos e suas ideias, é adquirida por nós através da experiência. Em grego, experiência se diz: empeiria – donde, empirismo, conhecimento empírico, isto é, conhecimento adquirido por meio da experiência.

O filósofo empirista John Locke afirmou: “Visto que o entendimento situa o homem acima dos outros seres sensíveis e dá-lhe toda vantagem e todo domínio que tem sobre eles, seu estudo consiste certamente num tópico que, por sua nobreza, é merecedor de nosso trabalho de investigá-lo. O entendimento, como o olho, que nos faz ver e perceber todas as outras coisas, não se observa a si mesmo; requer arte e esforço situá-lo à distância e fazê-lo seu próprio objeto.” A partir do século XVII a Filosofia dedica-se ao estudo do conhecimento e do entendimento, através da pergunta “Como podemos conhecer?”, referindo-se não somente ao mundo exterior, mas também ao conhecimento sobre o próprio entendimento e as ideias que nele estão contidas.

Mas os filósofos do iluminismo têm algumas afinidade com seus predecessores gregos: assim como Aristóteles diferia de Platão, Locke difere de Descartes. Platão e Descartes afastam a experiência sensível ou o conhecimento sensível do conhecimento verdadeiro, que é puramente intelectual. Aristóteles e Locke consideram que o conhecimento se realiza por graus contínuos, partindo da sensação até chegar às idéias.
Essa diferença de perspectiva estabelece as duas grandes orientações da teoria do
conhecimento, conhecidas como racionalismo e empirismo. Para o racionalismo, a fonte do conhecimento verdadeiro é a razão operando por si mesma, sem o auxílio da experiência sensível e controlando a própria experiência sensível.
Para o empirismo, a fonte de todo e qualquer conhecimento é a experiência sensível, responsável pelas idéias da razão e controlando o trabalho da própria razão.
Essas diferenças, porém, não impedem que haja um elemento comum a todos os filósofos a partir da modernidade, qual seja, tomar o entendimento humano como objeto da investigação filosófica.
Tornar o entendimento objeto para si próprio, tornar o sujeito do conhecimento objeto de conhecimento para si mesmo é a grande tarefa que a modernidade filosófica inaugura, ao desenvolver a teoria do conhecimento. Como se trata da volta do conhecimento sobre si mesmo para conhecer-se, ou do sujeito do conhecimento colocando-se como objeto para si mesmo, a teoria do conhecimento é a reflexão filosófica.

Adaptado de Chauí, M. "Convite à Filosofia"