quarta-feira, 21 de abril de 2010

Entrega de trabalhos

Data final : até 17 de maio de 2010 (segunda-feira)


  1. elaborar uma história em quadrinhos a partir da leitura da “Alegoria da Caverna” de Platão, ou, se preferir um roteiro que conte a história quadro-a-quadro. Em ambos os casos, espera-se um trabalho detalhado e que represente todos os aspectos da alegoria. Entregar em papel.

  1. Perguntas: qual a relação que a obra de arte mantém com a verdade na filosofia platônica? E na filosofia de Aristóteles? O que acontece com a arte a partir do final do século XIX?

Formas de entrega:

- uma dissertação única que reúna todas as respostas com tamanho mínimo de duas páginas, ou

-através de outras linguagens, por exemplo, artísticas como fotografia, vídeo, teatro, performance, canção, texto literário/poético ou outra. Entregar em papel.


Trabalhos individuais. Todos os alunos devem obrigatoriamente entregar as duas atividades.

Os subsídios para elaboração estão disponíveis no blog e no xerox.

Para entender a arte do século XX

A arte do século XX é frequentemente caracterizada pelo seu quase completo afastamento da mimesis como prática artística. Porém, este suposto afastamento relaciona-se sobretudo com uma determinada forma de compreender a mimesis, ou seja, a arte do século passado afasta-se fundamentalmente de um paradigma artístico que assentava na mimesis como uma prática concreta de imitação e representação da natureza. O que é definitivamente abandonado é, não tanto a mimesis enquanto tal, mas sobretudo, a predominância desse paradigma que vigorava desde o período renascentista e que postulava a arte como uma cópia da natureza, o mesmo é dizer, da realidade.
Essa forma de entender a mimesis como cópia, para além de conter óbvias ressonâncias de Platão, deriva igualmente do conceito latino de imitatio. No entanto, há uma outra forma de entender a mimesis artística e a sua relação com a natureza na qual aquela não é tomada somente como uma simples imitação do aspecto fenomenal dos seres, essa outra forma estabelece uma equivalência de identidades entre a capacidade geradora da natureza e a energia inventiva do artista. Neste contexto, o artista não se limita a copiar as formas preexistentes no mundo, ele é também, à semelhança do que sucede com a natureza, uma força criadora por si mesmo. Essa é a corrente aristotélica.
Estes dois modos de entender a mimesis atravessaram os séculos, contudo, a compreensão do artista como alguém que cria e inventa novas formas foi ganhando preponderância e já no período romântico estava em curso uma profunda separação entre a representação e a mimesis, sendo esta última considerada como algo de secundário para o artista enquanto criador. Em finais do século XIX, princípios do século XX, a relação mimética entre natureza e arte estava completamente invertida.
O que está aqui em causa é uma perda de importância da realidade exterior como referente para a arte, isto em favor de uma progressiva autonomia da arte até se chegar à proposição "a arte pela arte". É precisamente este o ponto fulcral de um certo tipo de História da Arte do século XX, ou seja, a recusa da mimesis e a insistência na compreensão da arte como um percurso evolutivo que tem como fim uma total autonomia da arte em relação à realidade. Toda a História da Arte consistia no esforço dos artistas para se libertarem dos temas e conteúdos em favor de formas progressivamente mais puras e abstratas. Neste sentido o formalismo da arte moderna seria grosso modo o resultado directo de um caminho de contínua recusa da mimesis que se iniciou com o impressionismo, continuou com Cézanne, com o cubismo e posteriormente prosseguiu com a pintura abstracta de Kandinsky e Mondrian. Uma das etapas culminantes desse percurso foi o expressionismo abstrato, com artistas como por exemplo Jackson Pollock, Barnett Newman e Willem de Kooning entre outros.

A linguagem da arte é algo que remete exclusivamente para si mesma, ou seja, não há nada fora do seu texto. A linguagem é uma mímica que não imita nada, não remete para nenhuma realidade fora de si própria, produz apenas efeitos de realidade. A arte é uma linguagem que nos remete exclusivamente para si mesma. Significa isto que a compreensão da arte não deve ser efetuada a partir de qualquer referência que lhe seja exterior. Assim sendo, o valor da mimesis para a compreensão da arte é praticamente nulo.
Aqui chegados estaríamos tentados a concluir que a relação entre a mimesis e a arte é algo de arcaico pertencente ao passado. Mas há uma outra história por contar. Uma história de contornos mais trágicos em que o afastamento da mimesis não resulta de uma evolução no interior da arte em direcção a formas puras e abstractas, mas sim de uma rotura entre o sujeito e a realidade. A autonomia da arte não é apenas um jogo formal mas surge também da angústia perante uma realidade que deixou de ter coordenadas fixas e que por essa razão já não é tão imediatamente representável como até então. O olhar humano deixou de organizar o real, o advento da civilização das máquinas implica uma visão do mundo que já não depende de uma subjectividade. Tome-se como exemplo a fotografia, a penetrância e o detalhe com que esta consegue chegar no real suplanta em muito a capacidade do olho humano, revelando desse modo uma realidade pouco habitual e envolta numa inquietante estranheza. Por outro lado, a multiplicação de fotografias multiplica simultaneamente os pontos de vista sobre a realidade pondo em causa a crença num mundo comum. Por tudo isto o real tornou-se algo de exterior, quase abstracto e a ancestral intimidade entre o homem e o mundo perdeu-se.

A arte anterior ao século XX baseava-se nessa relação de proximidade entre o homem e a sua realidade, a mimesis como cópia era uma expressão, uma reconstituição, da imagem dessa intimidade. Uma vez perdida essa intimidade já não faz qualquer sentido "copiar" o que já não existe. Assim, se como já vimos por um lado a arte vai percorrer um caminho das formas puras, por outro lado a arte vai tentar dar a ver essa realidade que se tornou estranha. Para o fazer terá de eliminar o carácter artístico da própria arte, ou seja, os artistas aspiravam a uma arte despida de artifícios que conseguisse apresentar o real tal como efectivamente é, sem vestígios de qualquer subjetividade. Neste contexto é então possível recuperar a mimesis enquanto prática artística válida, agora não já como uma cópia da realidade nem como sendo exclusivamente uma criação autônoma, mas sim como uma prática pela qual se estabelece uma passagem entre a realidade e a arte. Tendo em atenção esta última forma de entender a mimesis, pode-se afirmar que o real regressa à arte sobre a forma de trauma. A realidade parece possuir uma vida autônoma, exterior, que nos agride e nos aparece como estranha, como se fosse constituída por sonhos e pesadelos. Repare-se que no século XX, paralelamente à história oficial do modernismo baseada na evolução das formas em direção à abstração, corre uma história da arte cheia de melancolia e repleta de seres surreais, de corpos desfigurados, de paisagens fantasmagóricas cuja origem em certos casos remonta até à época medieval. Pense-se, entre outros exemplos possíveis, em Max Ernst, Francis Bacon, Giorgio de Chirico, Egon Schiele ou Lucien Freud.
Muitos artistas não estão apenas preocupados com o aspecto formal das suas obras, mas também estão partindo da relação de angústia que tinham com o real. A falta de intimidade com o real era a condição da autonomia abstracta da sua arte, por essa mesma razão as suas obras não são somente um jogo de formas plásticas, mas também um reflexo de uma inquietante estranheza. A este propósito repare-se, por exemplo, em certas mulheres que aparecem por entre as cores de uma obra de Willem de Kooning, nas formas quase orgânicas de Arshile Gorky ou até nas linhas nervosas e negras de Jackson Pollock. Assim, também estes artistas podem ser compreendidos a partir da noção de mimesis, com efeito, através das suas obras dá-se uma passagem dessa estranha realidade para a arte.

Um outro aspecto da relação entre a arte e realidade tem a ver com a chamada Pop-Art. Neste caso a arte já não copia a realidade directamente mas sim uma imagem da realidade. Quer isto dizer que arte seria neste caso uma espécie de cópia em segundo grau. Pensemos num exemplo, Andy Warhol efectuou inúmeras obras a partir de imagens jornalísticas ou provenientes do cinema e da televisão, simulacros. Se quiséssemos retomar Platão diríamos que se tratam de cópias de cópias e que por essa mesma razão afastam-se mais da verdadeira realidade. Porém, o que ressurge por detrás desta estratégia é mais uma vez a incapacidade para o sujeito representar a realidade. As obras de Warhol tentam apagar a presença de um autor, o mesmo é dizer, tentam captar a realidade através da ausência de uma subjetividade, "quero ser como uma máquina" afirmou o referido artista. Por outro lado, existe nessas obras uma tentativa não apenas de duplicar as imagens sem mais, mas sobretudo de retirar determinadas imagens do circuito mediático em que foram produzidas e restituí-las de um outro modo. Significa isto que as obras de Warhol, como aquelas em que aparecem as atrizes Marylin Monroe e Elizabeth Taylor, os desastres de automóveis ou as cadeiras eléctricas, não são simples reproduções equivalentes às mesmas imagens num jornal, numa televisão ou no cinema. Warhol, ao reproduzir essas imagens dá-lhes uma carga traumática, ou seja, uma outra realidade, que quando estavam emergidas no conjunto indiferenciado das imagens mediáticas não pareciam possuir. Assim, também neste caso é possível fazer apelo à noção de mimesis como modo de fazer a passagem entre a realidade e a arte.
A arte do final do século XX é herdeira destes temas e a sua relação com os diversos aspectos da realidade é mais forte do que nunca. Tão forte que frequentemente se deixa submergir pela realidade e torna-se difícil, quando não impossível, perceber o que pode distinguir um determinado objecto artístico de um manifesto político ou um ready-made de um outro qualquer banal objeto utilitário. Na verdade, sem a mimesis, ou seja, sem que haja uma passagem, uma mediação, entre a arte e a realidade, a arte oscila entre dois extremos. Por um lado uma espécie de meta-arte frequentemente estéril que joga com as formas e conceitos artísticos e tem o seu contraponto no decorativismo pós-moderno, por outro lado uma arte empenhada em causas políticas e sociais que por vezes pouco mais é do que um panfleto que, de forma "inocente", pretende denunciar nas galerias e museus os males da sociedade em que vivemos.

adaptado de Rui Lopes

A obra de arte: mímesis e aura

A partir da formulação da teoria das formas, Platão estabelece o papel que cabe à obra de arte em sua República: ela é apenas uma cópia da cópia da natureza. O demiurgo, um artesão divino que tem acesso ao mundo das essências, cria a natureza a partir de cópias pioradas das formas ou ideias. Assim, uma bela montanha é uma imitação (em grego mímesis) inferior ao seu original, a ideia do Belo, um conceito imaterial, uma essência. O artista e sua obra não podem ser aceitos na cidade justa pois vivem num mundo de ilusões e não buscam, como o filósofo faz, a verdade. As artes também podem levar as pessoas a emoções extremas, como no caso da tragédia, e entram em conflito com o ideal platônico do homem moderado que domina suas emoções e tem sua vida regrada pela razão e a busca da episteme (ciência ou conhecimento). A rejeição ao poeta e aos artistas em geral pode ser entendida politicamente: ele é indesejado na polis porque atrapalha a educação dos homens equilibrados da República: o filósofo-governante, o guerreiro e o comerciante. A arte que interessa a Platão é aquela que educa moralmente os cidadãos.

A arte é aparência, enquanto as essências são o próprio Ser. A arte nos leva à ilusão de ótica causada pela perspectiva, a uma vista apenas parcial do objeto copiado. No teatro, os personagens não controlam adequadamente suas emoções; na música também há mímesis de emoções e sentimentos. A arte é considerada um fantasma que engana velhos e crianças; as imagens, mesmo sem essência, têm força e poder, ameaçam a razão, trazem à tona o irracional do homem e levam por fim ao perder-se de si mesmo, à dor e à aflição, são consideradas piores que o mundo da sensibilidade, que sabemos é inferior ao mundo das ideias ou essências. Podemos perceber que o modo platônico de entender a obra de arte, o artista e seu lugar no mundo chega à contemporaneidade sob a forma de resquícios, com algumas características preservadas e outras já abandonadas.

Outro modo de entender a obra de arte é trazido por Aristóteles. A mímesis ressurge como uma tendência natural humana e animal: é um instinto que leva ao prazer e também ao conhecimento. É um meio rudimentar de aprender, mas ao imitar imagina-se e compara-se e usa-se a razão, é ao mesmo tempo intelectual e sensível. Já para o publico observador, a obra traz prazer de tipo intelectual, semelhante ao conhecer, que aumenta à medida que original e imitação/obra são mais semelhantes.

Para Aristóteles a obra é aparência, não é totalmente verdadeira e nem é apenas ilusão, está a meio caminho de existir e não-existir e a ligação entre esses dois estados é a verossimilhança. Assim, quando faz um quadro, o pintor procura não imitar a realidade de um indivíduo, mas a realidade de toda a espécie à qual pertence o indivíduo. Por exemplo, no retrato de um cavalo o artista não deve retratar aquele cavalo que está à sua frente, mas um cavalo que representa a espécie dos cavalos como um todo. Falhas dos indivíduos são corrigidas nas obras de arte. O artista não imita o que é contingente (o individual), mas ele faz o que é essencial e necessário (a espécie). Aristóteles também considera que a tragédia é elevada, pois aproxima-se do essencial dos sentimentos e emoções humanos e será superior à história, que é contingente, circunstancial e singular. A poesia e a arte estão mais próximas da filosofia que a história.

De qualquer modo, a arte até meados do século XIX e começo do século XX preserva sua característica de ser “espelho da natureza”, mímesis de objetos naturais. Podemos especular sobre quais os motivos que levaram à transformação da arte, ou à suposta superação da arte como mímesis.

Com o estabelecimento da fotografia em 1888, a pintura sente-se ameaçada pois os retratos feitos por um fotógrafo são mais fiéis do que aqueles feitos à mão. A saída surge no movimento impressionista, que desiste da pintura figurativa e passa a realizar a arte abstrata, que deixa de representar os retratados e se atém às emoções. Desse modo, a arte supera a necessidade da mímesis. Outro exemplo de arte não-mimética é o ready-made de Marcel Duchamp, a partir de 1912. O artista pega um urinol e o coloca em uma galeria de arte em exposição. A partir deste momento a obra de arte é aquilo que o artista disser que é arte. Passa-se então da imitação à obra conceitual, que não busca paralelo ou retratar a natureza. A obra existe em si mesma e refere-se a si mesma, descartando mesmo sua ambição de ser bela. Na arte contemporânea encontramos consequências deste ato de Duchamp, uma delas é a arte da performance, a arte feita com o corpo. Mas cabe ressaltar que ainda existem muitas obras atualmente que fazem uso da mímesis, o retrato da natureza.

Além disso, cabe perguntar se a fotografia é ou não uma arte mimética. Ou até mesmo se é uma arte.

Uma importante inovação na arte surge a partir da Revolução Industrial. A chegada do cinema, da fotografia e da música gravada leva a uma nova era, que Walter Benjamin chamou de era da reprodutibilidade técnica, que afetou o modo de fazer arte e o modo como o público recebe a obra de arte. Primeiramente, a obra técnica é feita por muitas pessoas, técnicos e artistas, e será vista por muitas pessoas. A obra da era anterior à indústria era feita pelo artista e vista por poucas pessoas pois ficava restrita aos visitantes de uma cidade a um museu por exemplo. Benjamin fará uma distinção que ele chamou de aura: a obra aurática é a feita manulmente por um artista e a sem aura é a produzida e reproduzida tecnicamente, ou seja, precisa de máquinas para existir. A obra de reprodutibilidade técnica descarta a idéia de original, pois não há diferença entre duas cópias de um mesmo filme negativo. O mesmo vale para um filme ou para uma música gravada. Já a cópia de uma obra aurática é considerada uma falsificação. Assim, podemos dizer que o teatro, a pintura, a escultura, o ballet e a performance são obras auráticas e o cinema, a fotografia, a vídeo-arte são obras sem aura. Mas, sobre a música, trata-se de obra aurática ou não?

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Duchamp, Caravaggio e Platão




Em algumas salas a imagem da pintura de Caravaggio foi apresentada e perguntei: apesar de Platão considerar a arte como algo inferior, pois é cópia da cópia (mímesis da mímesis) da realidade das formas (essências ou idéias), o que podemos dizer de uma pintura tão bela quanto essa de Caravaggio (“Judite e Holofernes”)?

Mesmo aceitando a filosofia de Platão, apesar do fato de ser uma sombra da sombra, algo do mundo sensível, não é possível esquecer de seu valor.

Outra questão: qual o caminho que a arte pode tomar quando abandona a mímesis, como no século XX, com Marcel Duchamp (a partir de 1912) e seu ready-made urinol?

Aviso

Os textos do blog também estão disponíveis na xerox da Escola para quem preferir.

A teoria platônica das ideias

O texto a seguir, de estilo mais rigoroso, embora muito bem escrito, resume a filosofia de Platão.


Platão, na juventude, teria conhecido as idéias de Heráclito de Éfeso sobre a mudança permanente de todas as coisas e afirmava a impossibilidade de qualquer conhecimento estável. Os dados dos sentidos teriam validade instantânea e fugaz, o que tornava inútil e ilegítima qualquer afirmativa sobre a realidade: quando se tentava exprimir algo, este já deixara de ser o que parecia no momento anterior. (“Em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo, nem substância mortal pode tocar duas vezes na mesma condição”). O incessante movimento das coisas tornava-se um empecilho à ciência e à ação, que não podiam dispensar bases estáveis. Buscando justamente estabelecer esses fundamentos seguros para o conhecimento e para a ação, Platão desenvolverá, na fase inicial de sua filosofia, teses que tendem a sustentar a realidade no intemporal e no estático. Só posteriormente seu pensamento irá reabilitar e reabsorver o movimento e a transformação, tentando estabelecer a síntese entre a tradição eleática de Parmênides (que negava a racionalidade de qualquer mudança) e a heraclítica (que afirmava o fluxo contínuo de todas as coisas).

Mas o impacto causado por Sócrates no pensamento e na vida de Platão teve repercussões duradouras: com Sócrates, o jovem Platão pudera sentir a necessidade de fundamentar qualquer atividade em conceitos claros e seguros. Por intermédio de Sócrates e de sua incessante ação como perquiridor de consciências e de crítico de idéias vagas ou preconcebidas, o primado da política torna-se, para Platão, o primado da verdade, da ciência. Se o interesse de Platão foi inicialmente dirigido para a política, através da influência de Sócrates ele reconhece que o importante não era fazer política, qualquer política, mas a política.

Em geral, os "diálogos socráticos" encontrados nas obras de Platão desenvolvem discussões sobre ética, procurando definir determinada virtude (coragem, piedade, amizade e autocontrole). Mas são diálogos aporéticos, ou seja, fazem o levantamento de diferentes modos de se conceituar aquelas virtudes, denunciam a fragilidade dessas conceituações, mas deixam a questão aberta, inconclusa. Isso possivelmente estaria relacionado ao objetivo do próprio Sócrates, que se preocupava antes com o desencadeamento do conhecimento de si mesmo e não propriamente com definições de conceitos. De qualquer modo, algumas teses socráticas básicas podem ser encontradas nesses diálogos, como a da identificação da virtude com certo tipo de conhecimento e a da unidade de todas as virtudes.

Cerca de 387 a.C. Platão funda em Atenas a Academia, sua própria escola de investigação científica e filosófica. O acontecimento é da máxima importância para a história do pensamento ocidental. Platão torna-se o primeiro dirigente de uma instituição permanente, voltada para a pesquisa original e concebida como conjugação de esforços de um grupo que vê no conhecimento algo vivo e dinâmico e não um corpo de doutrinas a serem simplesmente resguardadas e transmitidas. O que se sabe das atividades da Academia testemunha sobre essa concepção da atividade intelectual: antes de tudo busca a inquietação, reformulação permanente e multiplicação das vias de abordagem dos problemas, a filosofia sendo fundamentalmente filosofar — esforço para pensar mais profunda e claramente.

Para Platão a política não se limita à prática, insegura e circunstancial. Deve pressupor a investigação sistemática dos fundamentos da conduta humana — como Sócrates ensinara. Porém, suas bases últimas não se limitariam ao plano psicológico e ético: os fundamentos da ação requerem uma explicação global da realidade, na qual aquela conduta se desenrola. Platão também via na matemática a promessa de um caminho que ultrapassaria as aporias socráticas e conduziria à certeza. A educação deveria, em última instância, basear-se numa episteme (ciência ou conhecimento) e ultrapassar o plano instável da opinião (doxa). E a política poderia deixar de ser o jogo fortuito de ações motivadas por interesses nem sempre claros e freqüentemente pouco dignos, para se transformar numa ação iluminada pela verdade e um gesto criador de harmonia, justiça e beleza.

Durante cerca de vinte anos, Platão dedica-se ao progressivo desligamento das posições originariamente socráticas e a formulação de uma filosofia própria, a partir da nova solução para o problema do conhecimento, representada pela doutrina das idéias: formas incorpóreas e transcendentes que seriam os modelos dos objetos sensíveis. Essas novas formulações aparecem no diálogo A República.

O mundo perfeito das idéias

"Admitamos pois — o que me servirá de ponto de partida e de base — que existe um Belo em si e por si, um Bom, um Grande, e assim por diante. Se admitires a existência dessas coisas, se concordares comigo, esperarei que elas me permitirão tornar-te clara a causa, que assim descobrirás, que faz com que a alma seja imortal." É assim que Sócrates (aqui na condição de personagem platônico) formula explicitamente uma nova linha de resolução de antigos problemas filosóficos e científicos: a doutrina das idéias. Pouco antes, Sócrates declarara: "... Eis o caminho que segui. Coloco em cada caso um princípio, aquele que julgo o mais sólido, e tudo o que parece estar em consonância com ele — quer se trate de causas ou de qualquer outra coisa — admito como verdadeiro, admitindo como falso o que com ele não concorda". Aquela afirmação de que existe um Belo em si, um Bom em si ou um Grande em si surge, dentro do desenvolvimento da filosofia platônica, justamente no momento em que esta começa a assumir fisionomia própria e se distingue do socratismo. Essa separação teria ocorrido no ponto em que a formulação da noção de idéia, como essência existente em si — independente das coisas e do intelecto humano —, representa a adoção, por Platão, de um método de pesquisa de índole matemática. Colocar um princípio e aceitar como verdadeiro o que está em consonância com ele, rejeitando o que lhe está em desacordo significa pensar "como geômetra", que propõe hipóteses das quais extrai as conseqüências lógicas. E é o que Platão propõe: remontar do condicionado (os problemas a serem resolvidos ou as coisas a serem explicadas) à condição (a hipótese explicativa), visando antes de tudo a estabelecer uma relação de conseqüência lógica entre as duas proposições (a que exprime o problema e a que exprime sua hipotética resolução). De saída, o importante é verificar o que está em consonância com o princípio proposto. Todavia, o exame da primeira hipótese que resulta da aplicação do "método dos geômetras" — a existência de entidades em si, as idéias, causas inteligíveis do que os sentidos apreendem — remeterá a outras hipóteses que a condicionam.

A busca de uma condição incondicionada para o conhecimento, o encontro com o absoluto fundamento da verdade (que só então se distingue do erro e da fantasia), é para Platão não o ponto de partida, mas a meta a ser alcançada. Porém só se chegará aí depois que se atravesse todo o campo do possível. O absoluto, o não-hipotético, habita além das últimas hipóteses.

Nos primeiros diálogos — os da "fase socrática" — já se buscava algo de idêntico e uno que estaria por trás das múltiplas maneiras de se entender conceitos como "temperança" ou "coragem".

Nos diálogos da primeira fase, que parecem reproduzir as conversações do próprio Sócrates, a procura do mesmo limitava-se a debates sobre questões morais. A dialética socrática podia dar-se por satisfeita, na medida em que seu objetivo seria o dramático embate das consciências, condição para o autoconhecimento. Já em Platão a dialética vai progressivamente perdendo o interesse humano imediato e a dramaticidade, para se converter, cada vez com mais apoio em recursos matemáticos, num método impessoal e teórico, que visa aos próprios problemas e não apenas à sondagem da consciência dos interlocutores.

Platão propõe uma perspectiva ascendente que, seguindo a sugestão do método dos geômetras, as define as idéias como causas intemporais para os objetos sensíveis. O que é belo, mais ou menos belo, é belo porque existe um belo pleno, o Belo que, intemporalmente, explica todos os casos e graus particulares de beleza, como a condição que sustenta a inteligibilidade do condicionado.

Através dos diálogos, Platão vai caracterizando essas causas inteligíveis dos objetos físicos que ele chama de idéias ou formas. Elas seriam incorpóreas e invisíveis — o que significa dizer justamente que não está na matéria a razão de sua inteligibilidade. Seriam reais, eternas e sempre idênticas a si mesmas, escapando à corrosão do tempo, que torna perecíveis os objetos físicos. Perfeitas e imutáveis, as idéias constituiriam os modelos ou paradigmas dos quais as coisas materiais seriam apenas cópias imperfeitas e transitórias. Seriam, pois, tipos ideais, a transcender o plano mutável dos objetos físicos.

A afirmativa de que o mundo material se torna compreensível através da hipótese das idéias deixa, porém, em suspenso um problema decisivo: o da possibilidade de se conhecer essas realidades invisíveis e incorpóreas. Com efeito, o que inicialmente foi tomado como hipótese explicativa — a existência do mundo das idéias — não basta a si mesmo. É preciso que se admita um conhecimento das idéias incorpóreas que antecede ao conhecimento fornecido pelos sentidos, que só alcançam o corpóreo. Platão expõe a doutrina de que o intelecto pode apreender as idéias porque também ele é, como as idéias, incorpóreo. A alma humana, antes do nascimento — antes de prender-se ao cárcere do corpo —, teria contemplado as idéias enquanto seguia o cortejo dos deuses. Encarnada, perde a possibilidade de contato direto com os arquétipos incorpóreos, mas diante de suas cópias — os objetos sensíveis — pode ir gradativamente recuperando o conhecimento das idéias. Conhecer seria então lembrar, reconhecer. A hipótese da reminiscência vem, assim, sustentar a hipótese da existência do mundo das formas. Mas, por sua vez, implica outra doutrina, que a condiciona: a da preexistência da alma em relação ao corpo, a da incorruptibilidade dessa alma incorpórea e, portanto, a da sua imortalidade. Essa imortalidade é a condição para a ciência, ou conhecimento, para a explicação inteligível do mundo físico.

Mas se a doutrina da reminiscência liga a alma às idéias e justifica que o homem as conheça, como explicar o relacionamento entre as formas e os objetos físicos, entre o incorpóreo e o seu oposto, o corpóreo? Antes ainda suscita outro problema, que está na base daquele e que não havia sido esclarecido nas obras anteriores: afinal, de que há idéias?

Os exemplos de idéias são extraídos ou da esfera dos valores estéticos e morais (o Belo, o Bom), ou das relações matemáticas (o Grande). De fato, desses dois campos é que o platonismo vai colher preferencialmente os pontos de apoio para propor um mundo de modelos transcendentes. Isso é compreensível, uma vez que a variação de mais e menos (mais belo, menos belo; maior, menor) parece sugerir a referência a um padrão absoluto, a uma "justa medida" (o Belo, o Grande). A relação existente entre as formas e os objetos físicos que lhe são correspondentes é a outra grande questão. Platão pretende resolvê-la através de duas noções fundamentais: a de participação e a de imitação.

A doutrina da imitação (mímesis) de Platão adquire acepção metafísica, como lógica decorrência do "distanciamento" entre o plano sensível e o inteligível. Os objetos físicos — múltiplos, concretos e perecíveis — aparecem como cópias imperfeitas dos arquétipos ideais, incorpóreos e perenes. O mundo sensível seria uma imitação do mundo inteligível, pois todo o universo seria resultante da ação de um divino artesão (demiurgo) que teria dado forma, pelo menos até certo ponto, a uma matéria-prima, tomando por modelo as idéias eternas. A arte divina teria produzido as obras da natureza e também as imagens dessas obras (como o reflexo do fogo numa parede). Analogamente, a arte humana produz de dupla maneira: o homem tanto constrói uma casa real como, na condição de pintor, pode reproduzir num quadro a imagem dessa casa. O artista aparece por isso, na República, como "criador de aparências". O problema da imitação torna-se mais complexo quando referido aos objetos de arte, objetos artificiais, artefatos. Faz-se então a distinção entre graus intermediários de imitação: o objeto natural imita a idéia que lhe é correspondente e a arte imita, por sua vez, aquela imitação. A relação cópia-modelo usada metafisicamente por Platão para explicar a relação sensível-inteligível reaparece assim em sua concepção estética e justifica as restrições feitas aos artistas na República. Particularmente os poetas, como Homero, são aí apresentados como fazendo "simulacros com simulacros, afastados da verdade". A arte imitativa deveria preservar o caráter de cópia de seus produtos, não querendo confundi-los com os objetos reais. Outro caminho para as artes plásticas seria tentar reproduzir a verdadeira realidade — das formas incorpóreas —, o que coloca Platão, segundo alguns intérpretes, como antecipador da arte abstrata.

O itinerário da sombra à luz

Na República, a organização da cidade ideal apóia-se numa divisão racional do trabalho. Como reformador social, Platão considera que a justiça depende da diversidade de funções exercidas por três classes distintas: a dos artesãos, dedicados à produção de bens materiais; a dos soldados, encarregados de defender a cidade; a dos guardiães, incumbidos de zelar pela observância das leis. Produção, defesa, administração interna — estas as três funções essenciais da cidade. E o importante não é que uma classe usufrua de uma felicidade superior, mas que toda a cidade seja feliz. O indivíduo faria parte da cidade para poder cumprir sua função social e nisso consiste ser justo: em cumprir a própria função.

A reorganização da cidade, para transformá-la em reino da justiça, exige naturalmente reformas radicais. A família, por exemplo, deveria desaparecer para que as mulheres fossem comuns a todos os guardiães; as crianças seriam educadas pela cidade e a procriação deveria ser regulada de modo a preservar a eugenia; para evitar os laços familiares egoístas, nenhuma criança conheceria seu verdadeiro pai e nenhum pai seu verdadeiro filho; a execução dos trabalhos não levaria em conta distinção de sexo mas tão-somente a diversidade das aptidões naturais.

A efetivação dessa utopia social dependeria fundamentalmente, por outro lado, de um cuidadoso sistema educativo, que permitisse a cada classe desenvolver as virtudes indispensáveis ao exercício de suas atribuições. Mas a cidade ideal só poderia surgir se o governo supremo fosse confiado a reis-filósofos. Esses chefes de Estado seriam escolhidos dentre os melhores guardiães e submetidos a diversas provas que permitiriam avaliar seu patriotismo e sua resistência. Mas, principalmente, deveriam realizar uma série de estudos para poderem atingir a ciência, ou seja, o conhecimento das idéias, elevando-se até seu fundamento supremo: a idéia do Bem.

A discussão em torno da cidade ideal cede então lugar, na República, a duas apresentações sintéticas de como se desdobraria o conhecimento humano ao ascender até a contemplação do mundo das essências: o esquema da linha dividida e a alegoria da caverna.

Uma linha dividida em dois segmentos (AB, BC), um representando o plano sensível e outro o plano inteligível, serve a Platão para tornar visualizável a ascese dialética. Esses dois segmentos apresentam subdivisões correspondentes a diferentes tipos de objetos sensíveis e inteligíveis e, conseqüentemente, a modalidades diversas de conhecimento:

O processo de conhecimento representa a progressiva passagem das sombras e imagens turvas ao luminoso universo das idéias, atravessando etapas intermediárias. Cada fase encontra sua fundamentação e resolução na fase seguinte. O que não é visto claramente no plano sensível (e só pode ser objeto de conjetura) transforma-se em objeto de crença quando se tem condição de percepção nítida. Assim, o animal que na obscuridade "parece um gato" revela-se de fato um gato quando se acende a luz. Mas essa evidência sensível ainda pertence ao domínio da opinião: é uma crença, pois a certeza só pode advir de uma demonstração racional e, portanto, depois que se penetra na esfera do conhecimento inteligível. No plano sensível o conhecimento não ultrapassa o nível da opinião. A primeira etapa do conhecimento inteligível é representada pela diânoia, que estabelece ligações racionais: é o conhecimento típico das matemáticas. O conhecimento sensível deve fundamentar-se nesse patamar que lhe está sobreposto e lhe dá sustentação. Mas os conhecimentos matemáticos não constituem, no platonismo, o ápice da ciência. São ainda uma forma de inteligibilidade primeira, marcada por compromissos com o plano sensível: as entidades matemáticas são múltiplas (faz-se um cálculo ou uma demonstração geométrica utilizando-se diversos 3 ou vários triângulos); além disso a própria representatividade manifesta um liame do plano matemático com a sensibilidade, a denunciar seu caráter de intermediário entre a percepção sensível e a inteligibilidade plena. Esta só se alcança quando, além das entidades matemáticas, chega-se à evidência puramente intelectual (nôesis) das idéias. Não se trata mais de vários 3, mas da essência mesma de "trindade", que confere sentido àqueles seus reflexos matemáticos; não se trata mais de triângulos — de vários tipos —, mas da "triangularidade" que neles se efetiva, sem se esgotar em nenhum deles. Chega-se assim ao domínio das formas. Finalmente, no cume do mundo das idéias, a superessência do Bem daria sustentação a todo o edifício das formas puras e incorpóreas. Princípio de conhecimento (do ponto de vista do sujeito) e de cognoscibilidade (do ponto de vista do objeto), o Bem exerce papel análogo ao que o Sol possui no plano sensível e material. Princípio de realidade — é ele que confere às coisas essência e existência, transmutando em estrutura real a tessitura inicialmente hipotética das idéias. Superessência é o absoluto irrelacionável e por isso mesmo indefinível: dele só se podem ter indicações aproximadas, como as que se obtêm de uma "justa medida". Do caráter indefinível do Bem necessariamente decorre um senso agudo da limitação da palavra, que perpassa toda a obra platônica.

A alegoria da caverna dramatiza a ascese do conhecimento. Descreve um prisioneiro que contempla, no fundo de uma caverna, os reflexos de simulacros que — sem que ele possa ver — são transportados à frente de um fogo artificial. Como sempre viu essas projeções de artefatos, toma-os por realidade e permanece iludido. A situação desmonta-se e inverte-se desde que o prisioneiro se liberta: reconhece o engano em que permanecera, descobre a "encenação" que até então o enganara e, depois de galgar a rampa que conduz à saída da caverna, pode lá fora começar a contemplar a verdadeira realidade. Aos poucos, ele, que fora habituado à sombra, vai podendo olhar o mundo real: primeiro através de reflexos — como o do céu estrelado refletido na superfície das águas tranqüilas —, até finalmente ter condições para olhar diretamente o Sol, fonte de toda luz e de toda realidade.

Essa alegoria guarda ainda uma conotação política, que o contexto da República não permite negligenciar. Aquele que se liberta das ilusões e se eleva à visão da realidade é o que pode e deve governar para libertar os outros prisioneiros das sombras: é o filósofo-político, aquele que faz de sua sabedoria um instrumento de libertação de consciências e de justiça social, aquele que faz da procura da verdade uma arte de desprestidigitação, um desilusionismo.

Referências bibliográficas

Platão, Vida e Obra. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

A Verdade e a Filosofia

Trechos de “Convite à Filosofia”, unidade 3, edição online

A verdade como um valor

A Filosofia não é um conjunto de idéias e de sistemas que possamos apreender automaticamente, não é um passeio turístico pelas paisagens intelectuais, mas uma decisão ou deliberação orientada por um valor: a verdade. É o desejo do verdadeiro que move a Filosofia e suscita filosofias.

Afirmar que a verdade é um valor significa: o verdadeiro confere às coisas, aos

seres humanos, ao mundo um sentido que não teriam se fossem considerados

indiferentes à verdade e à falsidade.

Ignorância, incerteza e insegurança

Ignorar é não saber alguma coisa. A ignorância pode ser tão profunda que sequer

a percebemos ou a sentimos, isto é, não sabemos que não sabemos, não sabemos

que ignoramos. Em geral, o estado de ignorância se mantém em nós enquanto as

crenças e opiniões que possuímos para viver e agir no mundo se conservam como

eficazes e úteis, de modo que não temos nenhum motivo para duvidar delas,

nenhum motivo para desconfiar delas e, conseqüentemente, achamos que

sabemos tudo o que há para saber.

A incerteza é diferente da ignorância porque, na incerteza, descobrimos que

somos ignorantes, que nossas crenças e opiniões parecem não dar conta da

realidade, que há falhas naquilo em que acreditamos e que, durante muito tempo,

nos serviu como referência para pensar e agir. Na incerteza não sabemos o que

pensar, o que dizer ou o que fazer em certas situações ou diante de certas coisas,

pessoas, fatos, etc. Temos dúvidas, ficamos cheios de perplexidade e somos

tomados pela insegurança.

Outras vezes, estamos confiantes e seguros e, de repente, vemos ou ouvimos

alguma coisa que nos enche de espanto e de admiração, não sabemos o que

pensar ou o que fazer com a novidade do que vimos ou ouvimos porque as

crenças, opiniões e idéias que possuímos não dão conta do novo. O espanto e a

admiração, assim como antes a dúvida e a perplexidade, nos fazem querer saber o

que não sabemos, nos fazem querer sair do estado de insegurança ou de

encantamento, nos fazem perceber nossa ignorância e criam o desejo de superar a incerteza.

Quando isso acontece, estamos na disposição de espírito chamada busca da

verdade.

O desejo da verdade aparece muito cedo nos seres humanos como desejo de

confiar nas coisas e nas pessoas, isto é, de acreditar que as coisas são exatamente

tais como as percebemos e o que as pessoas nos dizem é digno de confiança e

crédito. Ao mesmo tempo, nossa vida cotidiana é feita de pequenas e grandes

decepções e, por isso, desde cedo, vemos as crianças perguntarem aos adultos se

tal ou qual coisa “é de verdade ou é de mentira”.

Quando uma criança ouve uma história, inventa uma brincadeira ou um

brinquedo, quando joga, vê um filme ou uma peça teatral, está sempre atenta para

saber se “é de verdade ou de mentira”, está sempre atenta para a diferença entre o

“de mentira” e a mentira propriamente dita, isto é, para a diferença entre brincar,

jogar, fingir e faltar à confiança.

Quando uma criança brinca, joga e finge, está criando um outro mundo, mais rico

e mais belo, mais cheio de possibilidades e invenções do que o mundo onde, de

fato, vive. Mas sabe, mesmo que não formule explicitamente tal saber, que há

uma diferença entre imaginação e percepção, ainda que, no caso infantil, essa

diferença seja muito tênue, muito leve, quase imperceptível – tanto assim, que a

criança acredita em mundos e seres maravilhosos como parte do mundo real de

sua vida.

Por isso mesmo, a criança é muito sensível à mentira dos adultos, pois a mentira

é diferente do “de mentira”, isto é, a mentira é diferente da imaginação e a

criança se sente ferida, magoada, angustiada quando o adulto lhe diz uma

mentira, porque, ao fazê-lo, quebra a relação de confiança e a segurança infantis.

Quando crianças, estamos sujeitos a duas decepções: a de que os seres, as coisas,

os mundos maravilhosos não existem “de verdade” e a de que os adultos podem

dizer-nos falsidades e nos enganar. Essa dupla decepção pode acarretar dois

resultados opostos: ou a criança se recusa a sair do mundo imaginário e sofre

com a realidade como alguma coisa ruim e hostil a ela; ou, dolorosamente, aceita

a distinção, mas também se torna muito atenta e desconfiada diante da palavra

dos adultos. Nesse segundo caso, a criança também se coloca na disposição da

busca da verdade.

Dificuldades para a busca da verdade

Em nossa sociedade, é muito difícil despertar nas pessoas o desejo de buscar a

verdade. Pode parecer paradoxal que assim seja, pois parecemos viver numa

sociedade que acredita nas ciências, que luta por escolas, que recebe durante 24

horas diárias informações vindas de jornais, rádios e televisões, que possui

editoras, livrarias, bibliotecas, museus, salas de cinema e de teatro, vídeos,

fotografias e computadores.

Ora, é justamente essa enorme quantidade de veículos e formas de informação

que acaba tornando tão difícil a busca da verdade, pois todo mundo acredita que

está recebendo, de modos variados e diferentes, informações científicas,

filosóficas, políticas, artísticas e que tais informações são verdadeiras, sobretudo

porque tal quantidade informativa ultrapassa a experiência vivida pelas pessoas,

que, por isso, não têm meios para avaliar o que recebem.

Bastaria, no entanto, que uma mesma pessoa, durante uma semana, lesse de

manhã quatro jornais diferentes e ouvisse três noticiários de rádio diferentes; à

tarde, freqüentasse duas escolas diferentes, onde os mesmos cursos estariam

sendo ministrados; e, à noite, visse os noticiários de quatro canais diferentes de

televisão, para que, comparando todas as informações recebidas, descobrisse que

elas “não batem” umas com as outras, que há vários “mundos” e várias

“sociedades” diferentes, dependendo da fonte de informação.

Uma experiência como essa criaria perplexidade, dúvida e incerteza. Mas as

pessoas não fazem ou não podem fazer tal experiência e por isso não percebem

que, em lugar de receber informações, estão sendo desinformadas. E, sobretudo,

como há outras pessoas (o jornalista, o radialista, o professor, o médico, o

policial, o repórter) dizendo a elas o que devem saber, o que podem saber, o que

podem e devem fazer ou sentir, confiando na palavra desses “emissores de

mensagens”, as pessoas se sentem seguras e confiantes, e não há incerteza porque

há ignorância.

Uma outra dificuldade para fazer surgir o desejo da busca da verdade, em nossa

sociedade, vem da propaganda.

A propaganda trata todas as pessoas – crianças, jovens, adultos, idosos – como

crianças extremamente ingênuas e crédulas. O mundo é sempre um mundo “de

faz-de-conta”: nele a margarina fresca faz a família bonita, alegre, unida e feliz; o

automóvel faz o homem confiante, inteligente, belo, sedutor, bem-sucedido nos

negócios, cheio de namoradas lindas; o desodorante faz a moça bonita, atraente,

bem empregada, bem vestida, com um belo apartamento e lindos namorados; o

cigarro leva as pessoas para belíssimas paisagens exóticas, cheias de aventura e

de negócios coroados de sucesso que terminam com lindos jantares à luz de

velas.

A propaganda nunca vende um produto dizendo o que ele é e para que serve. Ela

vende o produto rodeando-o de magias, belezas, dando-lhe qualidades que são de

outras coisas (a criança saudável, o jovem bonito, o adulto inteligente, o idoso

feliz, a casa agradável, etc.), produzindo um eterno “faz-de-conta”.

Uma outra dificuldade para o desejo da busca da verdade vem da atitude dos

políticos nos quais as pessoas confiam, ouvindo seus programas, suas propostas,

seus projetos enfim, dando-lhes o voto e vendo-se, depois, ludibriadas, não só

porque não são cumpridas as promessas, mas também porque há corrupção, mau

uso do dinheiro público, crescimento das desigualdades e das injustiças, da

miséria e da violência.

Em vista disso, a tendência das pessoas é julgar que é impossível a verdade na

política, passando a desconfiar do valor e da necessidade da democracia e

aceitando “vender” seu voto por alguma vantagem imediata e pessoal, ou caem

na descrença e no ceticismo.

No entanto, essas dificuldades podem ter o efeito oposto, isto é, suscitar em

muitas pessoas dúvidas, incertezas, desconfianças e desilusões que as façam

desejar conhecer a realidade, a sociedade, a ciência, as artes, a política. Muitos

começam a não aceitar o que lhes é dito. Muitos começam a não acreditar no que

lhes é mostrado. E, como Sócrates em Atenas, começam a fazer perguntas, a

indagar sobre fatos e pessoas, coisas e situações, a exigir explicações, a exigir

liberdade de pensamento e de conhecimento.

Para essas pessoas, surge o desejo e a necessidade da busca da verdade. Essa

busca nasce não só da dúvida e da incerteza, nasce também da ação deliberada

contra os preconceitos, contra as idéias e as opiniões estabelecidas, contra

crenças que paralisam a capacidade de pensar e de agir livremente.

Podemos, dessa maneira, distinguir dois tipos de busca da verdade. O primeiro é

o que nasce da decepção, da incerteza e da insegurança e, por si mesmo, exige

que saiamos de tal situação readquirindo certezas. O segundo é o que nasce da

deliberação ou decisão de não aceitar as certezas e crenças estabelecidas, de ir além delas e de encontrar explicações, interpretações e significados para a

realidade que nos cerca. Esse segundo tipo é a busca da verdade na atitude

filosófica.

Podemos oferecer dois exemplos célebres dessa busca filosófica. Já falamos do

primeiro: Sócrates andando pelas ruas e praças de Atenas indagando aos

atenienses o que eram as coisas e idéias em que acreditavam. O segundo exemplo

é o do filósofo Descartes.

Descartes começa sua obra filosófica fazendo um balanço de tudo o que sabia: o

que lhe fora ensinado pelos preceptores e professores, pelos livros, pelas viagens,

pelo convívio com outras pessoas. Ao final, conclui que tudo quanto aprendera,

tudo quanto sabia e tudo quanto conhecera pela experiência era duvidoso e

incerto. Decide, então, não aceitar nenhum desses conhecimentos, a menos que

pudesse provar racionalmente que eram certos e dignos de confiança. Para isso,

submete todos os conhecimentos existentes em sua época e os seus próprios a

um exame crítico conhecido como dúvida metódica, declarando que só aceitará

um conhecimento, uma idéia, um fato ou uma opinião se, passados pelo crivo da

dúvida, revelarem-se indubitáveis para o pensamento puro.

Dogmatismo e busca da verdade

Quando prestamos atenção em Sócrates ou Descartes, notamos que ambos, por

motivos diferentes e usando procedimentos diferentes, fazem uma mesma coisa,

isto é, desconfiam das opiniões e crenças estabelecidas em suas sociedades, mas

também desconfiam das suas próprias idéias e opiniões. Do que desconfiam eles,

afinal? Desconfiam do dogmatismo.

O que é dogmatismo?

Dogmatismo é uma atitude muito natural e muito espontânea que temos, desde

muito crianças. É nossa crença de que o mundo existe e que é exatamente tal

como o percebemos. Temos essa crença porque somos seres práticos, isto é, nos

relacionamos com a realidade como um conjunto de coisas, fatos e pessoas que

são úteis ou inúteis para nossa sobrevivência.

Os seres humanos, porque são seres culturais, trabalham. O trabalho é uma ação

pela qual modificamos as coisas e a realidade de modo a conseguir nossa

preservação na existência. Constroem casas, fabricam vestuário e utensílios,

produzem objetos técnicos e de consumo, inventam meios de transporte, de

comunicação e de informação. Através da prática ou do trabalho e da técnica, os

seres humanos organizam-se social e politicamente, criam instituições sociais

(família, escola, agricultura, comércio, indústria, relações entre grupos e classes,

etc.) e instituições políticas (o Estado, o poder executivo, legislativo e judiciário,

as forças militares profissionais, os tribunais e as leis).

Essas práticas só são possíveis porque acreditamos que o mundo existe, que é tal

como o percebemos e tal como nos ensinaram que ele é, que pode ser modificado

ou conservado por nós, que é explicado pelas religiões e pelas ciências, que é

representado pelas artes. Acreditamos que os outros seres humanos também são

racionais, pois, graças à linguagem, trocamos idéias e opiniões, pensamos de

modo muito parecido e a escola e os meios de comunicação garantem a

manutenção dessas semelhanças.

Na atitude dogmática, tomamos o mundo como já dado, já feito, já pensado, já

transformado. A realidade natural, social, política e cultural forma uma espécie

de moldura de um quadro em cujo interior nos instalamos e onde existimos.

Mesmo quando acontece algo excepcional ou extraordinário (uma catástrofe, o

aparecimento de um objeto inteiramente novo e desconhecido), nossa tendência

natural e dogmática é a de reduzir o excepcional e o extraordinário aos padrões do que já conhecemos e já sabemos. Mesmo quando descobrimos que alguma

coisa é diferente do que havíamos suposto, essa descoberta não abala nossa

crença e nossa confiança na realidade, nem nossa familiaridade com ela.

O mundo é como a novela de televisão: muita coisa acontece, mas, afinal, nada

acontece, pois quando a novela termina, os bons foram recompensados, os maus

foram punidos, os pobres bons ficaram ricos, os ricos maus ficaram pobres, a

mocinha casou com o mocinho certo, a família boa se refez e a família má se

desfez. Em outras palavras, os acontecimentos da novela servem apenas para

confirmar e reforçar o que já sabíamos e o que já esperávamos. Tudo se mantém

numa atmosfera ou num clima de familiaridade, de segurança e sossego.

Na atitude dogmática ou natural, aceitamos sem nenhum problema que há uma

realidade exterior a nós e que, embora externa e diferente de nós, pode ser

conhecida e tecnicamente transformada por nós. Achamos que o espaço existe,

que nele as coisas estão como num receptáculo; achamos que o tempo também

existe e que nele as coisas e nós próprios estamos submetidos à sucessão dos

instantes.

...

Tanto os antigos quanto os modernos afirmam que:

1. a verdade é conhecida por evidência (a evidência pode ser obtida por intuição,

dedução ou indução);

2. a verdade se exprime no juízo, onde a idéia está em conformidade com o ser

das coisas ou com os fatos;

3. o erro, o falso e a mentira se alojam no juízo (quando afirmamos de uma coisa

algo que não pertence à sua essência ou natureza, ou quando lhe negamos algo

que pertence necessariamente à sua essência ou natureza);

4. as causas do erro e do falso são as opiniões preconcebidas, os hábitos, os

enganos da percepção e da memória;

5. a causa do falso e da mentira, para os modernos, também se encontra na

vontade, que é mais poderosa do que o intelecto ou o pensamento, e precisa ser

controlada por ele;

6. uma verdade, por referir-se à essência das coisas ou dos seres, é sempre

universal e necessária e distingue-se da aparência, pois esta é sempre particular,

individual, instável e mutável;

7. o pensamento se submete a uma única autoridade: a dele própria com

capacidade para o verdadeiro.