segunda-feira, 5 de abril de 2010

A Verdade e a Filosofia

Trechos de “Convite à Filosofia”, unidade 3, edição online

A verdade como um valor

A Filosofia não é um conjunto de idéias e de sistemas que possamos apreender automaticamente, não é um passeio turístico pelas paisagens intelectuais, mas uma decisão ou deliberação orientada por um valor: a verdade. É o desejo do verdadeiro que move a Filosofia e suscita filosofias.

Afirmar que a verdade é um valor significa: o verdadeiro confere às coisas, aos

seres humanos, ao mundo um sentido que não teriam se fossem considerados

indiferentes à verdade e à falsidade.

Ignorância, incerteza e insegurança

Ignorar é não saber alguma coisa. A ignorância pode ser tão profunda que sequer

a percebemos ou a sentimos, isto é, não sabemos que não sabemos, não sabemos

que ignoramos. Em geral, o estado de ignorância se mantém em nós enquanto as

crenças e opiniões que possuímos para viver e agir no mundo se conservam como

eficazes e úteis, de modo que não temos nenhum motivo para duvidar delas,

nenhum motivo para desconfiar delas e, conseqüentemente, achamos que

sabemos tudo o que há para saber.

A incerteza é diferente da ignorância porque, na incerteza, descobrimos que

somos ignorantes, que nossas crenças e opiniões parecem não dar conta da

realidade, que há falhas naquilo em que acreditamos e que, durante muito tempo,

nos serviu como referência para pensar e agir. Na incerteza não sabemos o que

pensar, o que dizer ou o que fazer em certas situações ou diante de certas coisas,

pessoas, fatos, etc. Temos dúvidas, ficamos cheios de perplexidade e somos

tomados pela insegurança.

Outras vezes, estamos confiantes e seguros e, de repente, vemos ou ouvimos

alguma coisa que nos enche de espanto e de admiração, não sabemos o que

pensar ou o que fazer com a novidade do que vimos ou ouvimos porque as

crenças, opiniões e idéias que possuímos não dão conta do novo. O espanto e a

admiração, assim como antes a dúvida e a perplexidade, nos fazem querer saber o

que não sabemos, nos fazem querer sair do estado de insegurança ou de

encantamento, nos fazem perceber nossa ignorância e criam o desejo de superar a incerteza.

Quando isso acontece, estamos na disposição de espírito chamada busca da

verdade.

O desejo da verdade aparece muito cedo nos seres humanos como desejo de

confiar nas coisas e nas pessoas, isto é, de acreditar que as coisas são exatamente

tais como as percebemos e o que as pessoas nos dizem é digno de confiança e

crédito. Ao mesmo tempo, nossa vida cotidiana é feita de pequenas e grandes

decepções e, por isso, desde cedo, vemos as crianças perguntarem aos adultos se

tal ou qual coisa “é de verdade ou é de mentira”.

Quando uma criança ouve uma história, inventa uma brincadeira ou um

brinquedo, quando joga, vê um filme ou uma peça teatral, está sempre atenta para

saber se “é de verdade ou de mentira”, está sempre atenta para a diferença entre o

“de mentira” e a mentira propriamente dita, isto é, para a diferença entre brincar,

jogar, fingir e faltar à confiança.

Quando uma criança brinca, joga e finge, está criando um outro mundo, mais rico

e mais belo, mais cheio de possibilidades e invenções do que o mundo onde, de

fato, vive. Mas sabe, mesmo que não formule explicitamente tal saber, que há

uma diferença entre imaginação e percepção, ainda que, no caso infantil, essa

diferença seja muito tênue, muito leve, quase imperceptível – tanto assim, que a

criança acredita em mundos e seres maravilhosos como parte do mundo real de

sua vida.

Por isso mesmo, a criança é muito sensível à mentira dos adultos, pois a mentira

é diferente do “de mentira”, isto é, a mentira é diferente da imaginação e a

criança se sente ferida, magoada, angustiada quando o adulto lhe diz uma

mentira, porque, ao fazê-lo, quebra a relação de confiança e a segurança infantis.

Quando crianças, estamos sujeitos a duas decepções: a de que os seres, as coisas,

os mundos maravilhosos não existem “de verdade” e a de que os adultos podem

dizer-nos falsidades e nos enganar. Essa dupla decepção pode acarretar dois

resultados opostos: ou a criança se recusa a sair do mundo imaginário e sofre

com a realidade como alguma coisa ruim e hostil a ela; ou, dolorosamente, aceita

a distinção, mas também se torna muito atenta e desconfiada diante da palavra

dos adultos. Nesse segundo caso, a criança também se coloca na disposição da

busca da verdade.

Dificuldades para a busca da verdade

Em nossa sociedade, é muito difícil despertar nas pessoas o desejo de buscar a

verdade. Pode parecer paradoxal que assim seja, pois parecemos viver numa

sociedade que acredita nas ciências, que luta por escolas, que recebe durante 24

horas diárias informações vindas de jornais, rádios e televisões, que possui

editoras, livrarias, bibliotecas, museus, salas de cinema e de teatro, vídeos,

fotografias e computadores.

Ora, é justamente essa enorme quantidade de veículos e formas de informação

que acaba tornando tão difícil a busca da verdade, pois todo mundo acredita que

está recebendo, de modos variados e diferentes, informações científicas,

filosóficas, políticas, artísticas e que tais informações são verdadeiras, sobretudo

porque tal quantidade informativa ultrapassa a experiência vivida pelas pessoas,

que, por isso, não têm meios para avaliar o que recebem.

Bastaria, no entanto, que uma mesma pessoa, durante uma semana, lesse de

manhã quatro jornais diferentes e ouvisse três noticiários de rádio diferentes; à

tarde, freqüentasse duas escolas diferentes, onde os mesmos cursos estariam

sendo ministrados; e, à noite, visse os noticiários de quatro canais diferentes de

televisão, para que, comparando todas as informações recebidas, descobrisse que

elas “não batem” umas com as outras, que há vários “mundos” e várias

“sociedades” diferentes, dependendo da fonte de informação.

Uma experiência como essa criaria perplexidade, dúvida e incerteza. Mas as

pessoas não fazem ou não podem fazer tal experiência e por isso não percebem

que, em lugar de receber informações, estão sendo desinformadas. E, sobretudo,

como há outras pessoas (o jornalista, o radialista, o professor, o médico, o

policial, o repórter) dizendo a elas o que devem saber, o que podem saber, o que

podem e devem fazer ou sentir, confiando na palavra desses “emissores de

mensagens”, as pessoas se sentem seguras e confiantes, e não há incerteza porque

há ignorância.

Uma outra dificuldade para fazer surgir o desejo da busca da verdade, em nossa

sociedade, vem da propaganda.

A propaganda trata todas as pessoas – crianças, jovens, adultos, idosos – como

crianças extremamente ingênuas e crédulas. O mundo é sempre um mundo “de

faz-de-conta”: nele a margarina fresca faz a família bonita, alegre, unida e feliz; o

automóvel faz o homem confiante, inteligente, belo, sedutor, bem-sucedido nos

negócios, cheio de namoradas lindas; o desodorante faz a moça bonita, atraente,

bem empregada, bem vestida, com um belo apartamento e lindos namorados; o

cigarro leva as pessoas para belíssimas paisagens exóticas, cheias de aventura e

de negócios coroados de sucesso que terminam com lindos jantares à luz de

velas.

A propaganda nunca vende um produto dizendo o que ele é e para que serve. Ela

vende o produto rodeando-o de magias, belezas, dando-lhe qualidades que são de

outras coisas (a criança saudável, o jovem bonito, o adulto inteligente, o idoso

feliz, a casa agradável, etc.), produzindo um eterno “faz-de-conta”.

Uma outra dificuldade para o desejo da busca da verdade vem da atitude dos

políticos nos quais as pessoas confiam, ouvindo seus programas, suas propostas,

seus projetos enfim, dando-lhes o voto e vendo-se, depois, ludibriadas, não só

porque não são cumpridas as promessas, mas também porque há corrupção, mau

uso do dinheiro público, crescimento das desigualdades e das injustiças, da

miséria e da violência.

Em vista disso, a tendência das pessoas é julgar que é impossível a verdade na

política, passando a desconfiar do valor e da necessidade da democracia e

aceitando “vender” seu voto por alguma vantagem imediata e pessoal, ou caem

na descrença e no ceticismo.

No entanto, essas dificuldades podem ter o efeito oposto, isto é, suscitar em

muitas pessoas dúvidas, incertezas, desconfianças e desilusões que as façam

desejar conhecer a realidade, a sociedade, a ciência, as artes, a política. Muitos

começam a não aceitar o que lhes é dito. Muitos começam a não acreditar no que

lhes é mostrado. E, como Sócrates em Atenas, começam a fazer perguntas, a

indagar sobre fatos e pessoas, coisas e situações, a exigir explicações, a exigir

liberdade de pensamento e de conhecimento.

Para essas pessoas, surge o desejo e a necessidade da busca da verdade. Essa

busca nasce não só da dúvida e da incerteza, nasce também da ação deliberada

contra os preconceitos, contra as idéias e as opiniões estabelecidas, contra

crenças que paralisam a capacidade de pensar e de agir livremente.

Podemos, dessa maneira, distinguir dois tipos de busca da verdade. O primeiro é

o que nasce da decepção, da incerteza e da insegurança e, por si mesmo, exige

que saiamos de tal situação readquirindo certezas. O segundo é o que nasce da

deliberação ou decisão de não aceitar as certezas e crenças estabelecidas, de ir além delas e de encontrar explicações, interpretações e significados para a

realidade que nos cerca. Esse segundo tipo é a busca da verdade na atitude

filosófica.

Podemos oferecer dois exemplos célebres dessa busca filosófica. Já falamos do

primeiro: Sócrates andando pelas ruas e praças de Atenas indagando aos

atenienses o que eram as coisas e idéias em que acreditavam. O segundo exemplo

é o do filósofo Descartes.

Descartes começa sua obra filosófica fazendo um balanço de tudo o que sabia: o

que lhe fora ensinado pelos preceptores e professores, pelos livros, pelas viagens,

pelo convívio com outras pessoas. Ao final, conclui que tudo quanto aprendera,

tudo quanto sabia e tudo quanto conhecera pela experiência era duvidoso e

incerto. Decide, então, não aceitar nenhum desses conhecimentos, a menos que

pudesse provar racionalmente que eram certos e dignos de confiança. Para isso,

submete todos os conhecimentos existentes em sua época e os seus próprios a

um exame crítico conhecido como dúvida metódica, declarando que só aceitará

um conhecimento, uma idéia, um fato ou uma opinião se, passados pelo crivo da

dúvida, revelarem-se indubitáveis para o pensamento puro.

Dogmatismo e busca da verdade

Quando prestamos atenção em Sócrates ou Descartes, notamos que ambos, por

motivos diferentes e usando procedimentos diferentes, fazem uma mesma coisa,

isto é, desconfiam das opiniões e crenças estabelecidas em suas sociedades, mas

também desconfiam das suas próprias idéias e opiniões. Do que desconfiam eles,

afinal? Desconfiam do dogmatismo.

O que é dogmatismo?

Dogmatismo é uma atitude muito natural e muito espontânea que temos, desde

muito crianças. É nossa crença de que o mundo existe e que é exatamente tal

como o percebemos. Temos essa crença porque somos seres práticos, isto é, nos

relacionamos com a realidade como um conjunto de coisas, fatos e pessoas que

são úteis ou inúteis para nossa sobrevivência.

Os seres humanos, porque são seres culturais, trabalham. O trabalho é uma ação

pela qual modificamos as coisas e a realidade de modo a conseguir nossa

preservação na existência. Constroem casas, fabricam vestuário e utensílios,

produzem objetos técnicos e de consumo, inventam meios de transporte, de

comunicação e de informação. Através da prática ou do trabalho e da técnica, os

seres humanos organizam-se social e politicamente, criam instituições sociais

(família, escola, agricultura, comércio, indústria, relações entre grupos e classes,

etc.) e instituições políticas (o Estado, o poder executivo, legislativo e judiciário,

as forças militares profissionais, os tribunais e as leis).

Essas práticas só são possíveis porque acreditamos que o mundo existe, que é tal

como o percebemos e tal como nos ensinaram que ele é, que pode ser modificado

ou conservado por nós, que é explicado pelas religiões e pelas ciências, que é

representado pelas artes. Acreditamos que os outros seres humanos também são

racionais, pois, graças à linguagem, trocamos idéias e opiniões, pensamos de

modo muito parecido e a escola e os meios de comunicação garantem a

manutenção dessas semelhanças.

Na atitude dogmática, tomamos o mundo como já dado, já feito, já pensado, já

transformado. A realidade natural, social, política e cultural forma uma espécie

de moldura de um quadro em cujo interior nos instalamos e onde existimos.

Mesmo quando acontece algo excepcional ou extraordinário (uma catástrofe, o

aparecimento de um objeto inteiramente novo e desconhecido), nossa tendência

natural e dogmática é a de reduzir o excepcional e o extraordinário aos padrões do que já conhecemos e já sabemos. Mesmo quando descobrimos que alguma

coisa é diferente do que havíamos suposto, essa descoberta não abala nossa

crença e nossa confiança na realidade, nem nossa familiaridade com ela.

O mundo é como a novela de televisão: muita coisa acontece, mas, afinal, nada

acontece, pois quando a novela termina, os bons foram recompensados, os maus

foram punidos, os pobres bons ficaram ricos, os ricos maus ficaram pobres, a

mocinha casou com o mocinho certo, a família boa se refez e a família má se

desfez. Em outras palavras, os acontecimentos da novela servem apenas para

confirmar e reforçar o que já sabíamos e o que já esperávamos. Tudo se mantém

numa atmosfera ou num clima de familiaridade, de segurança e sossego.

Na atitude dogmática ou natural, aceitamos sem nenhum problema que há uma

realidade exterior a nós e que, embora externa e diferente de nós, pode ser

conhecida e tecnicamente transformada por nós. Achamos que o espaço existe,

que nele as coisas estão como num receptáculo; achamos que o tempo também

existe e que nele as coisas e nós próprios estamos submetidos à sucessão dos

instantes.

...

Tanto os antigos quanto os modernos afirmam que:

1. a verdade é conhecida por evidência (a evidência pode ser obtida por intuição,

dedução ou indução);

2. a verdade se exprime no juízo, onde a idéia está em conformidade com o ser

das coisas ou com os fatos;

3. o erro, o falso e a mentira se alojam no juízo (quando afirmamos de uma coisa

algo que não pertence à sua essência ou natureza, ou quando lhe negamos algo

que pertence necessariamente à sua essência ou natureza);

4. as causas do erro e do falso são as opiniões preconcebidas, os hábitos, os

enganos da percepção e da memória;

5. a causa do falso e da mentira, para os modernos, também se encontra na

vontade, que é mais poderosa do que o intelecto ou o pensamento, e precisa ser

controlada por ele;

6. uma verdade, por referir-se à essência das coisas ou dos seres, é sempre

universal e necessária e distingue-se da aparência, pois esta é sempre particular,

individual, instável e mutável;

7. o pensamento se submete a uma única autoridade: a dele própria com

capacidade para o verdadeiro.

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