Trechos de “Convite à Filosofia”, unidade 3, edição online
A verdade como um valor
A Filosofia não é um conjunto de idéias e de sistemas que possamos apreender automaticamente, não é um passeio turístico pelas paisagens intelectuais, mas uma decisão ou deliberação orientada por um valor: a verdade. É o desejo do verdadeiro que move a Filosofia e suscita filosofias.
Afirmar que a verdade é um valor significa: o verdadeiro confere às coisas, aos
seres humanos, ao mundo um sentido que não teriam se fossem considerados
indiferentes à verdade e à falsidade.
Ignorância, incerteza e insegurança
Ignorar é não saber alguma coisa. A ignorância pode ser tão profunda que sequer
a percebemos ou a sentimos, isto é, não sabemos que não sabemos, não sabemos
que ignoramos. Em geral, o estado de ignorância se mantém em nós enquanto as
crenças e opiniões que possuímos para viver e agir no mundo se conservam como
eficazes e úteis, de modo que não temos nenhum motivo para duvidar delas,
nenhum motivo para desconfiar delas e, conseqüentemente, achamos que
sabemos tudo o que há para saber.
A incerteza é diferente da ignorância porque, na incerteza, descobrimos que
somos ignorantes, que nossas crenças e opiniões parecem não dar conta da
realidade, que há falhas naquilo em que acreditamos e que, durante muito tempo,
nos serviu como referência para pensar e agir. Na incerteza não sabemos o que
pensar, o que dizer ou o que fazer em certas situações ou diante de certas coisas,
pessoas, fatos, etc. Temos dúvidas, ficamos cheios de perplexidade e somos
tomados pela insegurança.
Outras vezes, estamos confiantes e seguros e, de repente, vemos ou ouvimos
alguma coisa que nos enche de espanto e de admiração, não sabemos o que
pensar ou o que fazer com a novidade do que vimos ou ouvimos porque as
crenças, opiniões e idéias que possuímos não dão conta do novo. O espanto e a
admiração, assim como antes a dúvida e a perplexidade, nos fazem querer saber o
que não sabemos, nos fazem querer sair do estado de insegurança ou de
encantamento, nos fazem perceber nossa ignorância e criam o desejo de superar a incerteza.
Quando isso acontece, estamos na disposição de espírito chamada busca da
verdade.
O desejo da verdade aparece muito cedo nos seres humanos como desejo de
confiar nas coisas e nas pessoas, isto é, de acreditar que as coisas são exatamente
tais como as percebemos e o que as pessoas nos dizem é digno de confiança e
crédito. Ao mesmo tempo, nossa vida cotidiana é feita de pequenas e grandes
decepções e, por isso, desde cedo, vemos as crianças perguntarem aos adultos se
tal ou qual coisa “é de verdade ou é de mentira”.
Quando uma criança ouve uma história, inventa uma brincadeira ou um
brinquedo, quando joga, vê um filme ou uma peça teatral, está sempre atenta para
saber se “é de verdade ou de mentira”, está sempre atenta para a diferença entre o
“de mentira” e a mentira propriamente dita, isto é, para a diferença entre brincar,
jogar, fingir e faltar à confiança.
Quando uma criança brinca, joga e finge, está criando um outro mundo, mais rico
e mais belo, mais cheio de possibilidades e invenções do que o mundo onde, de
fato, vive. Mas sabe, mesmo que não formule explicitamente tal saber, que há
uma diferença entre imaginação e percepção, ainda que, no caso infantil, essa
diferença seja muito tênue, muito leve, quase imperceptível – tanto assim, que a
criança acredita em mundos e seres maravilhosos como parte do mundo real de
sua vida.
Por isso mesmo, a criança é muito sensível à mentira dos adultos, pois a mentira
é diferente do “de mentira”, isto é, a mentira é diferente da imaginação e a
criança se sente ferida, magoada, angustiada quando o adulto lhe diz uma
mentira, porque, ao fazê-lo, quebra a relação de confiança e a segurança infantis.
Quando crianças, estamos sujeitos a duas decepções: a de que os seres, as coisas,
os mundos maravilhosos não existem “de verdade” e a de que os adultos podem
dizer-nos falsidades e nos enganar. Essa dupla decepção pode acarretar dois
resultados opostos: ou a criança se recusa a sair do mundo imaginário e sofre
com a realidade como alguma coisa ruim e hostil a ela; ou, dolorosamente, aceita
a distinção, mas também se torna muito atenta e desconfiada diante da palavra
dos adultos. Nesse segundo caso, a criança também se coloca na disposição da
busca da verdade.
Dificuldades para a busca da verdade
Em nossa sociedade, é muito difícil despertar nas pessoas o desejo de buscar a
verdade. Pode parecer paradoxal que assim seja, pois parecemos viver numa
sociedade que acredita nas ciências, que luta por escolas, que recebe durante 24
horas diárias informações vindas de jornais, rádios e televisões, que possui
editoras, livrarias, bibliotecas, museus, salas de cinema e de teatro, vídeos,
fotografias e computadores.
Ora, é justamente essa enorme quantidade de veículos e formas de informação
que acaba tornando tão difícil a busca da verdade, pois todo mundo acredita que
está recebendo, de modos variados e diferentes, informações científicas,
filosóficas, políticas, artísticas e que tais informações são verdadeiras, sobretudo
porque tal quantidade informativa ultrapassa a experiência vivida pelas pessoas,
que, por isso, não têm meios para avaliar o que recebem.
Bastaria, no entanto, que uma mesma pessoa, durante uma semana, lesse de
manhã quatro jornais diferentes e ouvisse três noticiários de rádio diferentes; à
tarde, freqüentasse duas escolas diferentes, onde os mesmos cursos estariam
sendo ministrados; e, à noite, visse os noticiários de quatro canais diferentes de
televisão, para que, comparando todas as informações recebidas, descobrisse que
elas “não batem” umas com as outras, que há vários “mundos” e várias
“sociedades” diferentes, dependendo da fonte de informação.
Uma experiência como essa criaria perplexidade, dúvida e incerteza. Mas as
pessoas não fazem ou não podem fazer tal experiência e por isso não percebem
que, em lugar de receber informações, estão sendo desinformadas. E, sobretudo,
como há outras pessoas (o jornalista, o radialista, o professor, o médico, o
policial, o repórter) dizendo a elas o que devem saber, o que podem saber, o que
podem e devem fazer ou sentir, confiando na palavra desses “emissores de
mensagens”, as pessoas se sentem seguras e confiantes, e não há incerteza porque
há ignorância.
Uma outra dificuldade para fazer surgir o desejo da busca da verdade, em nossa
sociedade, vem da propaganda.
A propaganda trata todas as pessoas – crianças, jovens, adultos, idosos – como
crianças extremamente ingênuas e crédulas. O mundo é sempre um mundo “de
faz-de-conta”: nele a margarina fresca faz a família bonita, alegre, unida e feliz; o
automóvel faz o homem confiante, inteligente, belo, sedutor, bem-sucedido nos
negócios, cheio de namoradas lindas; o desodorante faz a moça bonita, atraente,
bem empregada, bem vestida, com um belo apartamento e lindos namorados; o
cigarro leva as pessoas para belíssimas paisagens exóticas, cheias de aventura e
de negócios coroados de sucesso que terminam com lindos jantares à luz de
velas.
A propaganda nunca vende um produto dizendo o que ele é e para que serve. Ela
vende o produto rodeando-o de magias, belezas, dando-lhe qualidades que são de
outras coisas (a criança saudável, o jovem bonito, o adulto inteligente, o idoso
feliz, a casa agradável, etc.), produzindo um eterno “faz-de-conta”.
Uma outra dificuldade para o desejo da busca da verdade vem da atitude dos
políticos nos quais as pessoas confiam, ouvindo seus programas, suas propostas,
seus projetos enfim, dando-lhes o voto e vendo-se, depois, ludibriadas, não só
porque não são cumpridas as promessas, mas também porque há corrupção, mau
uso do dinheiro público, crescimento das desigualdades e das injustiças, da
miséria e da violência.
Em vista disso, a tendência das pessoas é julgar que é impossível a verdade na
política, passando a desconfiar do valor e da necessidade da democracia e
aceitando “vender” seu voto por alguma vantagem imediata e pessoal, ou caem
na descrença e no ceticismo.
No entanto, essas dificuldades podem ter o efeito oposto, isto é, suscitar em
muitas pessoas dúvidas, incertezas, desconfianças e desilusões que as façam
desejar conhecer a realidade, a sociedade, a ciência, as artes, a política. Muitos
começam a não aceitar o que lhes é dito. Muitos começam a não acreditar no que
lhes é mostrado. E, como Sócrates em Atenas, começam a fazer perguntas, a
indagar sobre fatos e pessoas, coisas e situações, a exigir explicações, a exigir
liberdade de pensamento e de conhecimento.
Para essas pessoas, surge o desejo e a necessidade da busca da verdade. Essa
busca nasce não só da dúvida e da incerteza, nasce também da ação deliberada
contra os preconceitos, contra as idéias e as opiniões estabelecidas, contra
crenças que paralisam a capacidade de pensar e de agir livremente.
Podemos, dessa maneira, distinguir dois tipos de busca da verdade. O primeiro é
o que nasce da decepção, da incerteza e da insegurança e, por si mesmo, exige
que saiamos de tal situação readquirindo certezas. O segundo é o que nasce da
deliberação ou decisão de não aceitar as certezas e crenças estabelecidas, de ir além delas e de encontrar explicações, interpretações e significados para a
realidade que nos cerca. Esse segundo tipo é a busca da verdade na atitude
filosófica.
Podemos oferecer dois exemplos célebres dessa busca filosófica. Já falamos do
primeiro: Sócrates andando pelas ruas e praças de Atenas indagando aos
atenienses o que eram as coisas e idéias em que acreditavam. O segundo exemplo
é o do filósofo Descartes.
Descartes começa sua obra filosófica fazendo um balanço de tudo o que sabia: o
que lhe fora ensinado pelos preceptores e professores, pelos livros, pelas viagens,
pelo convívio com outras pessoas. Ao final, conclui que tudo quanto aprendera,
tudo quanto sabia e tudo quanto conhecera pela experiência era duvidoso e
incerto. Decide, então, não aceitar nenhum desses conhecimentos, a menos que
pudesse provar racionalmente que eram certos e dignos de confiança. Para isso,
submete todos os conhecimentos existentes em sua época e os seus próprios a
um exame crítico conhecido como dúvida metódica, declarando que só aceitará
um conhecimento, uma idéia, um fato ou uma opinião se, passados pelo crivo da
dúvida, revelarem-se indubitáveis para o pensamento puro.
Dogmatismo e busca da verdade
Quando prestamos atenção em Sócrates ou Descartes, notamos que ambos, por
motivos diferentes e usando procedimentos diferentes, fazem uma mesma coisa,
isto é, desconfiam das opiniões e crenças estabelecidas em suas sociedades, mas
também desconfiam das suas próprias idéias e opiniões. Do que desconfiam eles,
afinal? Desconfiam do dogmatismo.
O que é dogmatismo?
Dogmatismo é uma atitude muito natural e muito espontânea que temos, desde
muito crianças. É nossa crença de que o mundo existe e que é exatamente tal
como o percebemos. Temos essa crença porque somos seres práticos, isto é, nos
relacionamos com a realidade como um conjunto de coisas, fatos e pessoas que
são úteis ou inúteis para nossa sobrevivência.
Os seres humanos, porque são seres culturais, trabalham. O trabalho é uma ação
pela qual modificamos as coisas e a realidade de modo a conseguir nossa
preservação na existência. Constroem casas, fabricam vestuário e utensílios,
produzem objetos técnicos e de consumo, inventam meios de transporte, de
comunicação e de informação. Através da prática ou do trabalho e da técnica, os
seres humanos organizam-se social e politicamente, criam instituições sociais
(família, escola, agricultura, comércio, indústria, relações entre grupos e classes,
etc.) e instituições políticas (o Estado, o poder executivo, legislativo e judiciário,
as forças militares profissionais, os tribunais e as leis).
Essas práticas só são possíveis porque acreditamos que o mundo existe, que é tal
como o percebemos e tal como nos ensinaram que ele é, que pode ser modificado
ou conservado por nós, que é explicado pelas religiões e pelas ciências, que é
representado pelas artes. Acreditamos que os outros seres humanos também são
racionais, pois, graças à linguagem, trocamos idéias e opiniões, pensamos de
modo muito parecido e a escola e os meios de comunicação garantem a
manutenção dessas semelhanças.
Na atitude dogmática, tomamos o mundo como já dado, já feito, já pensado, já
transformado. A realidade natural, social, política e cultural forma uma espécie
de moldura de um quadro em cujo interior nos instalamos e onde existimos.
Mesmo quando acontece algo excepcional ou extraordinário (uma catástrofe, o
aparecimento de um objeto inteiramente novo e desconhecido), nossa tendência
natural e dogmática é a de reduzir o excepcional e o extraordinário aos padrões do que já conhecemos e já sabemos. Mesmo quando descobrimos que alguma
coisa é diferente do que havíamos suposto, essa descoberta não abala nossa
crença e nossa confiança na realidade, nem nossa familiaridade com ela.
O mundo é como a novela de televisão: muita coisa acontece, mas, afinal, nada
acontece, pois quando a novela termina, os bons foram recompensados, os maus
foram punidos, os pobres bons ficaram ricos, os ricos maus ficaram pobres, a
mocinha casou com o mocinho certo, a família boa se refez e a família má se
desfez. Em outras palavras, os acontecimentos da novela servem apenas para
confirmar e reforçar o que já sabíamos e o que já esperávamos. Tudo se mantém
numa atmosfera ou num clima de familiaridade, de segurança e sossego.
Na atitude dogmática ou natural, aceitamos sem nenhum problema que há uma
realidade exterior a nós e que, embora externa e diferente de nós, pode ser
conhecida e tecnicamente transformada por nós. Achamos que o espaço existe,
que nele as coisas estão como num receptáculo; achamos que o tempo também
existe e que nele as coisas e nós próprios estamos submetidos à sucessão dos
instantes.
...
Tanto os antigos quanto os modernos afirmam que:
dedução ou indução);
das coisas ou com os fatos;
3. o erro, o falso e a mentira se alojam no juízo (quando afirmamos de uma coisa
algo que não pertence à sua essência ou natureza, ou quando lhe negamos algo
que pertence necessariamente à sua essência ou natureza);
4. as causas do erro e do falso são as opiniões preconcebidas, os hábitos, os
enganos da percepção e da memória;
vontade, que é mais poderosa do que o intelecto ou o pensamento, e precisa ser
controlada por ele;
6. uma verdade, por referir-se à essência das coisas ou dos seres, é sempre
universal e necessária e distingue-se da aparência, pois esta é sempre particular,
individual, instável e mutável;
7. o pensamento se submete a uma única autoridade: a dele própria com
capacidade para o verdadeiro.
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