
O texto a seguir é uma breve explicação psicanalítica dos sonhos.
"Não é o estudo das divagações, quando o doente se sujeita à regras psicanalíticas, o único
recurso técnico para sondagem do inconsciente. Ao mesmo escopo servem dois outros processos:
a interpretação de sonhos e o estudo dos lapsos e atos casuais. (...)
A interpretação de sonhos é na realidade a estrada real para o conhecimento do inconsciente, a base mais segura da
psicanálise. É campo onde cada trabalhador pode por si mesmo chegar a adquirir convicção própria, como atingir
maiores aperfeiçoamentos. Quando me perguntam como pode uma pessoa fazer-se psicanalista, respondo que é
pelo estudo dos próprios sonhos. (...).
Não se esqueçam de que se nossas elaborações oníricas noturnas mostram de um lado a
maior semelhança externa e o mais íntimo parentesco com as criações da alienação mental, são,
de outro lado, compatíveis com a mais perfeita saúde na vida desperta. Não é nenhum paradoxo
afirmar que quem fica admirado ante essas alucinações, delírios ou mudanças de caráter que
podemos chamar `normais’, sem procurar explicá-los, não tem a menor probabilidade de
compreender, senão como qualquer leigo, as formações anormais dos estados psíquicos
patológicos. E entre esses leigos os ouvintes podem contar atualmente, sem receio, quase todos
os psiquiatras.
Acompanhem-me agora numa rápida excursão pelo campo dos problemas do sonho.
Quando acordados, costumamos tratar os sonhos com o mesmo desdém com que os doentes
rejeitam as idéias soltas despertadas pelo psicanalista. Desprezamo-los, olvidando-os em geral
rápida e completamente. O nosso descaso funda-se no caráter exótico apresentado mesmo pelos
sonhos que possuem clareza e nexo, e sobre a evidente absurdez e insensatez dos demais; nossa
repulsa explica-se pelas tendências imorais e menos pudicas que se patenteiam em muitos deles. (...)
Em primeiro lugar, nem todos os sonhos são estranhos, incompreensíveis e confusos para
a pessoa que sonhou. Examinando os sonhos de criancinhas, desde um ano e meio de idade,
verificarão que eles são extremamente simples e de fácil explicação. A criancinha sonha sempre
com a realização de desejos que o dia anterior lhe trouxe e que ela não satisfez. Não há
necessidade de arte divinatória para encontrar solução tão simples; basta saber o que se passou
com a criança na véspera (`dia do sonho’). Estaria certamente resolvido, e de modo satisfatório, o
enigma do sonho, se o do adulto não fosse nada mais que o da criancinha: realização de desejos
trazidos pelo dia do sonho. E o é de fato. As dificuldades que esta solução apresenta removem-se
uma a uma, mediante a análise minuciosa dos sonhos.
A primeira objeção e a mais importante é a de que os sonhos dos adultos via de regra têm
um conteúdo ininteligível, sem nenhuma semelhança com a satisfação de desejos. Resposta:
estes sonhos estão distorcidos, o processo psíquico correspondente teria originariamente uma
expressão verbal muito diversa. O conteúdo manifesto do sonho, recordado vagamente de manhã
e que, não obstante a espontaneidade aparente, se exprime em palavras com esforço, deve ser
diferenciado dos pensamentos latentes do sonho que se têm de admitir como existentes no
inconsciente. Esta deformação possui mecanismo idêntico ao que já conhecemos desde quando
examinamos a gênese dos sintomas histéricos; e é uma prova da participação da mesma interação
de forças mentais tanto na formação dos sonhos como na dos sintomas. O conteúdo manifesto do
sonho é o substituto deformado para os pensamentos inconscientes do sonho. Esta deformação é
obra das forças defensivas do ego, isto é, das resistências que na vigília impedem, de modo geral,
a passagem para a consciência, dos desejos reprimidos do inconsciente; enfraquecidas durante o
sono, estas resistências ainda são suficientemente fortes para só os tolerar disfarçados. Quem
sonha, portanto, reconhece tão mal o sentido de seus sonhos, como o histérico as correlações e a
significação de seus sintomas.
De que há pensamentos latentes do sonho e que entre eles e o conteúdo manifesto existe
de fato o nexo aludido, os presentes se convencerão pela análise de sonhos, cuja técnica se
confunde com a da psicanálise. Pondo de lado a aparente conexão dos elementos do sonho
manifesto, procurarão os senhores evocar idéias por livre associação, partindo de cada um desses
elementos e observando as regras da prática psicanalítica. De posse deste material chegarão aos
pensamentos latentes do sonho com a mesma perfeição com que conseguiram surpreender no
doente o complexo oculto, por meio das idéias sugeridas pelas associações livres a partir dos
sintomas e lembranças. Pelos pensamentos latentes do sonho, descobertos desse modo, pode-se
ver sem mais nada como é justo equiparar o sonho dos adultos ao das crianças. O que agora,
como verdadeiro sentido do sonho, substitui o seu conteúdo manifesto - e isto é sempre
claramente compreensível - liga-se às impressões da véspera e se patenteia como a realização de
um desejo não-satisfeito. O sonho manifesto que conhecem no adulto graças à recordação pode
então ser descrito como uma realização velada de desejos reprimidos.
Podem agora os ouvintes, por uma espécie de trabalho sintético, examinar o processo
mediante o qual os pensamentos inconscientes do sonho se disfarçam no conteúdo manifesto.
Esse processo, que denominamos `elaboração onírica’, é digno de nosso maior interesse teórico,
porque em nenhuma outra circunstância poderíamos estudar melhor do que nele os processos
psíquicos, não-suspeitados, que se passam no inconsciente, ou, mais exatamente, entre dois
sistemas psíquicos distintos, como consciente e inconsciente. Entre tais processos psíquicos
recentemente descobertos ressaltam notavelmente o da condensação e o do deslocamento. A
elaboração onírica é um caso especial da influência recíproca de agrupamentos mentais diversos,
isto é, o resultado da divisão psíquica, e parece essencialmente idêntico ao trabalho de
deformação que transforma em sintomas os complexos cuja repressão fracassou.
Pela análise dos sonhos descobrirão os senhores ainda mais, com surpresa, porém do
modo mais convincente possível, o papel importantíssimo e nunca imaginado que os fatos e
impressões da tenra infância exercem no desenvolvimento do homem. Na vida onírica a criança
prolonga, por assim dizer, sua existência no homem, conservando todas as peculiaridades e
aspirações, mesmo as que se tornam mais tarde inúteis. Com força irresistível apresentar-se-lhe-ão os processos de desenvolvimento, repressões, sublimações e formações reativas, de onde
saiu, da criança com tão diferentes disposições, o chamado homem normal - esteio e em parte
vítima da civilização tão penosamente alcançada.
Quero ainda fazer notar que pela análise de sonhos também pudemos descobrir que o
inconsciente se serve, especialmente para a representação de complexos sexuais, de certo
simbolismo, em parte variável individualmente e em parte tipicamente fixo, que parece coincidir
com o que conjecturamos por detrás dos nossos mitos e lendas. Não seria impossível que essas
últimas criações populares recebessem, portanto, do sonho, a sua explicação.
Impende-nos adverti-los finalmente de que não se deixem desorientar pela objeção de que
aparecimento de pesadelos contradiz o nosso modo de entender o sonho como satisfação de
desejos. Além de que é necessário interpretar os pesadelos antes de sobre eles poder firmar
qualquer juízo, pode dizer-se de modo geral que a ansiedade que os acompanha não depende
assim tão simplesmente do conteúdo oniríco, como muitos imaginam por ignorar as condições da
ansiedade neurótica. A ansiedade é uma das reações do ego contra desejos reprimidos violentos,
e daí perfeitamente explicável a presença dela no sonho, quando a elaboração deste se pôs
excessivamente a serviço da satisfação daqueles desejos reprimidos.
Como vêem, o estudo dos sonhos já estaria em si justificado, pelo fato de que proporciona
conclusões sobre coisas de que por outros meios dificilmente chegaríamos a ter noção. Foi todavia
no decorrer do tratamento psicanalítico dos neuróticos que chegamos até ele. Pelo que até agora
dissemos podem compreender facilmente que a interpretação de sonhos, quando não a estorvam
em excesso as resistências do doente, leva ao conhecimento dos desejos ocultos e reprimidos,
bem como dos exemplos entretidos por este.
Extraído de “Cinco Lições de Psicanálise”, de Sigmund Freud