segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Nietzsche no jornal


O poeta e professor Antonio Cícero publicou o texto "Nietzsche e o niilismo", no caderno "Ilustrada", da Folha de São Paulo, em 12 de junho de 2010:

Nietzsche e o niilismo


"Nietzsche, em “A vontade de poder”, pergunta: “Que significa o niilismo?” E responde: “Que os valores supremos estão perdendo o seu valor”. Em “A gaia ciência”, ele descreve o niilismo como “a desconfiança de que há uma oposição entre o mundo em que até há pouco estávamos em casa com nossas venerações [...] e outro mundo em que somos nós mesmos: desconfiança inexorável, radical, profundíssima [...] que poderia colocar a próxima geração ante a terrível alternativa: ou vocês abolem as suas venerações ou – a si próprios! A segunda opção seria o niilismo – mas não seria a primeira também niilismo?”

Na verdade, o niilismo nesse sentido, isto é, a desconfiança e a negação dos valores supremos, constitui a SEGUNDA etapa do niilismo. A primeira consiste na depreciação da vida real em nome da postulação e da valorização de um mundo supra-sensível superior a ela. É o que faz a metafísica platônica, por exemplo. Platão, como se sabe, defende que o mundo que nos é dado pelos sentidos e no qual agimos, não passa de um simulacro do mundo verdadeiramente real, que é o mundo das ideias eternas, universais e imutáveis e, em primeiro lugar, da ideia do bem: do bem em si. “O pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje”, diz Nietzsche, “foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito do bem em si”. Por que? Porque ele desvaloriza o mundo real. O mundo sublunar em que vivemos é tanto menos dotado de realidade e valor, quanto mais se afaste desse mundo ideal.

Segundo Nietzsche, o Cristianismo é um platonismo vulgar, um “platonismo para o povo”. Trata-se, portanto, de niilismo para o povo. É “o nada divinizado”, como diz. Que maior degradação do mundo real pode ser concebida? Tal é a primeira etapa do niilismo, na Europa.

E como se chega à segunda etapa, isto é, o niilismo que já se considera como tal? Em “A vontade do poder”, Nietzsche especula que a moralidade cristã acaba por se voltar contra o próprio Deus cristão. A valorização da veracidade, que faz parte dessa moral, alimenta uma vontade da verdade que acaba por se revoltar contra a falsidade das interpretações cristãs do mundo. Descobre-se que não se tem o menor direito de pressupor um ser transcendente ou um em si das coisas, que fosse ou divino ou a encarnação da moralidade. A reação contra a ficção de que “Deus é a verdade” é: “Tudo é falso”.

A partir disso, negam-se todos os valores supremos. É a morte de Deus. O domínio do transcendente se torna nulo e vazio. O niilista nega Deus, o bem, a verdade, a beleza. Nada é realmente verdadeiro, nada realmente bom. Se antes a vida real era desvalorizada em nome dos valores supremos, agora os próprios valores supremos são desvalorizados, sem que se tenha reabilitado a vida real. Desmente-se o mundo metafísico, sem se crer no mundo físico. Nega-se qualquer finalidade ou unidade ao mundo. Nada vale a pena. No limite, dá-se uma negação de toda vontade. A vida é inteiramente depreciada.

Mas além desse modo passivo de niilismo passivo, que representa decadência e constitui um retrocesso do poder do espírito, há um outro niilismo, que Nietzsche chama de “niilismo ativo”. Este representa o aumento do poder do espírito. Nietzsche afirma que “seu máximo de força relativa, o [espírito] alcança como força violenta de destruição: como niilismo ativo”. Nietzsche classifica a si próprio como o primeiro niilista europeu perfeito, isto é, “o primeiro niilista europeu que já viveu em si o niilismo até o fim, já o deixou atrás de si e o superou”.

Tal niilismo não pode consistir, evidentemente, na destruição física das coisas ou dos seres humanos. Trata-se antes da abertura do caminho para a “transvaloração de todos os valores”, através do reconhecimento do caráter meramente relativo, particular e contingente de todas as crenças e valores dados. Ora, não é exatamente a esse reconhecimento que o ceticismo metódico instaurado pela filosofia moderna deveria ter conduzido, se tivesse realmente sido levado às últimas conseqüências? Não teria ele então consistido em niilismo ativo? Nesse sentido, Heidegger tem razão, ao pensar que Descartes está menos distante de Nietzsche do que este imagina... "

extraído do blog Acontecimentos de Antonio Cícero.


PS: O pequeno artigo nos serve como síntese dos temas que estamos tratando em sala e também para mostrar que a filosofia vai muito além das aulas e faz parte do cotidiano.

Um comentário:

  1. Nietzsche, Cristo, Darwin, Marx, Freud foram profetas, revolucionários, filósofos e elites intelectuais que contribuiram para um mundo melhor. Sonho colaborar com os melhores autores para selecionar as melhores ideias para um futuro melhor mais ético, social e glocal=global e local...

    ResponderExcluir