domingo, 24 de outubro de 2010

Freud no Mundo de Sofia 8

Mas apredram-nas. Essas palavras e pensamentos estavam latentes na consciência, porém só naquele momento, quando devido ao cansaço o cuidado diminui e já não há censura, é que elas vêm à luz.

Para um artista a situação é diferente. Mas para ele também é importante que a razão e a reflexão não controlem aquilo que se desenvolve melhor de uma forma livre, espontânea e inconsciente. Posso contar-te uma pequena fábula que ilustra o que eu disse?

- De bom grado.

-É uma fábula muito séria e muito triste.

- Começa!

- Era uma vez uma centopéia que com as suas cem pernas era muito boa a dançar. Quando dançava, os animais reuniam-se no bosque para a admirar e todos estavam muito impressionados pela sua habilidade. Só um animal não podia suportar que a centopéia dançasse, um sapo...

- Certamente tinha inveja.

-"Como é que posso impedi-la de dançar", pensou o sapo. Não podia dizer que não gostava da dança nem que era melhor a dançar do que a centopéia, seria um absurdo. Por fim, tramou um plano diabólico.

-Fala!

- Escreveu uma carta à centopéia: "Ó incomparável centopéia! Sou um devoto admirador da tua requintada dança. Gostaria de saber como te moves a dançar. Levantas primeiro a perna esquerda número 22 e depois a perna direita número 59? Ou começas por levantar a tua perna direita número 26 antes de levantares a tua perna esquerda número 44?

Aguardo ansiosamente uma resposta tua. Saudações cordiais, o sapo."

- Que horror!

- Quando a centopéia recebeu esta carta, refletiu pela primeira vez na sua vida no que fazia quando dançava. Que perna movia em primeiro lugar? E que perna vinha a seguir? O que te parece que aconteceu depois?

- Acho que a centopéia não voltou a dançar.

- Sim, foi o fim. É justamente isso que pode suceder quando a fantasia é sufocada pela razão.

- É uma história mesmo triste.

- Para um artista pode ser importante "deixar-se ir". Os surrealistas tentaram atingir um estado no qual tudo fluísse por si. Sentavam-se em frente a uma folha em branco e começavam a escrever sem pensarem no que estavam a escrever.

Chamaram-lhe “escrita automática”. A expressão provém do espiritismo, onde um médium acreditava que a caneta era guiada pelo espírito de um defunto. Mas voltaremos a falar destas coisas amanhã.

- Está bem.

- O artista surrealista também é de certo modo um médium, o médium do seu inconsciente. Mas talvez esteja presente um elemento inconsciente em qualquer processo criativo. Porque, o que é na realidade aquilo a que chamamos "criatividade"?

- Não é o fato de se criar uma coisa nova?

-Sim, e isso sucede quando existe uma colaboração entre fantasia e razão.

Demasiadas vezes, a razão sufoca a fantasia e isso é uma coisa grave, porque sem fantasia nunca nasce algo verdadeiramente novo. Eu vejo a fantasia como um sistema darwiniano.

- Desculpa, mas não compreendi isso.

- O darwinismo mostra que na natureza nascem mutantes uns a seguir aos outros, mas a natureza só precisa de alguns. Só alguns têm a possibilidade de sobrevivência.

- Sim?

- O mesmo sucede quando pensamos, quando estamos inspirados e temos muitas idéias.

Um "pensamento mutante" surge a seguir a outro na nossa consciência, se não nos submetemos a uma censura demasiado severa. Mas só alguns destes pensamentos podem ser utilizados. Neste ponto a razão ocupa o seu lugar, porque também tem uma função importante. Quando a caça do dia está na mesa, não podemos esquecer-nos de ser seletivos.

- É uma boa comparação.

- Imagina que tudo aquilo que nos impressionou, ou seja, toda a nossa fonte de inspirações, passasse pelos nossos lábios! Ou abandonasse o bloco de notas ou a gaveta da escrivaninha. O mundo afogar-se-ia num mar de idéias acidentais e não haveria qualquer escolha, Sofia.

- E é a razão que seleciona todas as idéias?

- Sim, ou achas que não? Talvez seja a fantasia que cria uma coisa nova, mas não é responsável pela escolha. Não é a fantasia que "compõe": uma composição, e qualquer obra de arte é uma composição, surge de uma colaboração admirável entre fantasia e razão, ou entre sensibilidade e pensamento. Há sempre algo de casual num processo criativo e, numa certa fase, é importante não fechar a porta a essas idéias casuais. É preciso soltarmos as ovelhas antes de começarem a pastar.

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